A fricção reversa
A boa digitalização deveria ser como uma prótese perfeita: você esquece que ela está lá

Você está com fome. Entra em um restaurante, senta na mesa e procura o cardápio. Não tem. Só um QR code desbotado colado na mesa. Você aponta o celular, espera carregar, navega por um site mal otimizado, descobre que não funciona no seu navegador, baixa um app, cria uma conta, confirma por e-mail… Quinze minutos depois, ainda não sabe se eles têm lasanha.
Enquanto isso, no mesmo celular, você compra qualquer coisa online em três toques: busca, clica, paga. Pronto.
Bem-vindo ao paradoxo da digitalização reversa. Enquanto o digital evoluiu para eliminar fricção, o mundo físico está sendo digitalizado de forma tão desastrosa que cria obstáculos onde antes não existiam. Estamos pegando experiências simples e transformando em pesadelos tecnológicos.
O PARADOXO DA DIGITALIZAÇÃO MAL FEITA
A ironia é gritante. Empresas nativas digitais estudam obsessivamente como reduzir cada segundo do checkout online. Já empresas tradicionais, na pressa de se digitalizar, implementam sistemas que adicionam minutos de frustração a tarefas simples.
No digital nativo, cada clique é pensado, cada tela é testada, cada fricção é eliminada. No digital transplantado, nessa digitalização forçada do mundo físico, parece que ninguém testou nada com pessoas reais.
O QR code do restaurante é só o começo. Vá a um supermercado e tente usar o autoatendimento. Escanear um tomate vira missão impossível. O sistema não reconhece o código de barras, você precisa buscar o produto numa lista infinita, pesar, digitar códigos… e então… a luz vermelha acende.
A maldita luz vermelha. O símbolo máximo da fricção reversa. A máquina que deveria ser autônoma trava e chama um funcionário. Você virou o caixa não remunerado, mas ainda precisa de supervisão. Quinze minutos para comprar três itens. Nesse mesmo tempo, você faria a compra do mês inteiro num app.
O CAFÉ E O TABLET DA CONFUSÃO
As cafeterias também descobriram como tornar o pedido de um café uma experiência kafkiana. Agora você não fala mais com o barista. Você interage com um tablet.
A tela sensível ao toque não responde direito ao toque. Você navega por categorias infinitas para encontrar um café simples. Descobre que precisa personalizar tudo: tipo de leite, intensidade, temperatura, tamanho do copo. Tudo isso para um café preto.

Reze para não querer leite vegetal ou ovos no azeite em vez de manteiga. Aí surgem subcategorias dentro de subcategorias, menus que se desdobram em labirintos digitais. Quinze toques para trocar leite por aveia.
Quando finalmente monta o pedido, o sistema pede para criar conta, inserir e-mail, aceitar termos, escolher se quer receber promoções. Depois de cinco minutos configurando preferências, você ainda não pediu o café.
O barista, ali do lado, observa em silêncio. Antes do tablet, você dizia “um café, por favor”, pagava e recebia. Um minuto. Funcionava.
O ESTACIONAMENTO QUE VIROU APP
Nos shoppings, o drama se repete. Agora não basta ter uma tag de pedágio automática. Você precisa baixar o app específico de cada shopping para usar o estacionamento.
Você chega na cancela com sua tag, aquela que funciona em qualquer estrada do país… e nada. Placa na cancela: “Baixe nosso app para usar o estacionamento”.
Enquanto o digital evoluiu para eliminar fricção, o mundo físico está sendo digitalizado de forma desastrosa.
Se não baixar, sua tag vira um pedaço de plástico inútil. Você precisa cadastrar o carro, adicionar cartão de crédito, aceitar termos. Tudo isso só para estacionar.
Parabéns. Você virou o gerente de TI não remunerado do shopping. Agora tem que gerenciar múltiplos apps, cadastrar o carro em cada um, manter os dados atualizados.
A ironia: pegaram uma tecnologia que eliminava fricção, o pagamento por aproximação, e adicionaram fricção digital obrigatória, o app específico. Transformaram uma experiência sem atrito em um processo que exige cadastro, download e gerenciamento ativo.
Antes, você passava direto. Agora precisa ser cliente digital do shopping só para estacionar o carro.
POR QUE ISSO ACONTECE?
A digitalização virou um fim em si mesma, não um meio para melhorar experiências. Empresas digitalizam não para facilitar a vida do cliente, mas para reduzir custo operacional. O QR code elimina o garçom. O autoatendimento elimina o caixa. O tablet elimina o atendente.
Mas esquecem de um detalhe: alguém precisa fazer o trabalho que esses profissionais faziam. E esse alguém é você. Você virou o garçom não remunerado, o caixa não remunerado, o atendente não remunerado.
A diferença é que você não foi treinado. Não sabe que o tomate precisa ser pesado antes de escanear. Não decorou os códigos dos produtos. Não sabe que o tablet do café trava se tocar muito rápido na tela.

Enquanto isso, no digital nativo, a lógica é oposta. Plataformas de e-commerce gastam milhões testando se um botão azul converte mais que um verde. Estudam milhões de usuários para eliminar qualquer obstáculo.
Sabem que se você precisar criar conta para comprar, metade desiste. Se o checkout tiver mais de três passos, a conversão cai. Se o site demorar mais de dois segundos, você vai embora.
Por isso criaram compra em um clique, checkout como convidado, pagamento por aproximação, entrega no mesmo dia. Cada inovação remove uma barreira.
A lição é simples: tecnologia boa é invisível. Ela resolve sem atrapalhar. Acelera sem complicar.
A DIGITALIZAÇÃO QUE FUNCIONA
Nem toda digitalização é ruim. Pix revolucionou pagamentos porque eliminou fricções reais. Não precisa troco, maquininha, nem esperar compensação. É instantâneo.
Apps de transporte funcionam porque resolveram problemas de verdade. Não precisa procurar táxi na rua, explicar endereço, carregar dinheiro, negociar preço. Aperta um botão e o carro vem.
A diferença é que essas tecnologias melhoraram experiências. Não forçaram você a aprender processos desnecessários para fazer o que já sabia fazer.
O FUTURO DA EXPERIÊNCIA FÍSICA-DIGITAL
A boa digitalização deveria ser como uma prótese perfeita. Você esquece que ela está lá. Ela amplia sem exigir que você mude seu comportamento natural.
O problema da fricção reversa é que ela inverte essa lógica. Em vez de a tecnologia se adaptar ao humano, força o humano a se adaptar à tecnologia. Em vez de eliminar intermediários desnecessários, elimina os necessários e transforma você no intermediário.
A solução não é voltar ao passado, mas aprender com o digital que funciona. Tecnologia boa resolve problemas reais, não cria problemas novos. Ela simplifica. Não complica. Ela acelera. Não atrasa.
A lição é simples: tecnologia boa é invisível. Ela resolve sem atrapalhar. Acelera sem complicar.
Quando você demorar 15 minutos para pedir uma lasanha, lembre-se: em algum lugar, alguém comprou uma lasanha congelada online em 15 segundos. A tecnologia existe. Só precisa ser bem aplicada.
A fricção reversa não é um problema tecnológico. É um problema de design. De empatia. De entender o que realmente importa em uma experiência humana. Enquanto isso não mudar, vamos continuar transformando tarefas simples em obstáculos digitais desnecessários.
E vamos continuar preferindo comprar online a sair de casa. Não porque o digital é melhor. Mas porque o físico digitalizado ficou pior que o analógico que ele substituiu.