Ambev se posiciona como empresa de tecnologia. E de marcas

Em entrevista à Fast Company Brasil, o CTO da Ambev, Eduardo Horai, conta como foi o processo de transformação digital da companhia

Crédito: Ambev/ Divulgação/ Flaticon

Lena Castellon 10 minutos de leitura

Uma cerveja não é só uma cerveja. É o que diz o CTO da Ambev, Eduardo Horai. Além dos ingredientes tradicionais – lúpulo, cevada e água –, a receita leva uma boa dose de tecnologia. A frase é reflexo do novo posicionamento da companhia, que no passado até se orgulhava de ser low tech. Hoje, a filosofia é completamente outra: a Ambev se apresenta como uma empresa de tecnologia e de marcas.

Dona de um portfólio de cervejas capaz de agradar todos os gostos, a corporação desenvolveu e vem consolidando plataformas digitais nos últimos anos, abrindo frentes inimagináveis uma década atrás. Uma delas é o Zé Delivery, que tem quatro milhões de usuários ativos mensais.

O aplicativo soma cinco milhões de pedidos por mês e responde por 6% das vendas (foram 21,9 milhões de hectolitros de cerveja no país, no segundo trimestre). “É o melhor app de delivery do mundo”, celebrou Horai, em um evento realizado em agosto em São Paulo, o Ambev Tech & Cheers.

Eduardo Horai (Crédito: Divulgação)

Outra plataforma é o e-commerce Bees, lançado em 2021 para atender os clientes comerciais (bares e restaurantes) e que vem crescendo como marketplace com parceiros como o Pão de Açúcar. O serviço conta com um desdobramento, o Bees Bank, que libera crédito para o ponto de venda.

A tecnologia é essencial também na logística de distribuição das bebidas e na própria produção, bem como na análise de dados e tendências do consumidor e do mercado.

O CEO da companhia, Jean Jereissati, tem dito que a Ambev ser chamada apenas de fabricante de bebidas não condiz com o atual posicionamento da empresa. Como ele declarou no LinkedIn – e no Tech & Cheers –, a corporação tem diversos negócios que conectam as pessoas e que geram crescimento para seu ecossistema.

De acordo com Jereissati, o ciclo de fusões e aquisições se encerrou. Agora é a vez da tecnologia que conecta serviços e pessoas e impulsiona suas marcas.

Esse pensamento ecoa por todo o C-level. Há cerca de três anos na companhia, Horai assegura que não há empresa de bens de consumo, no Brasil, que invista tanto em tecnologia como a Ambev. Uma prova dessa aposta está no tamanho do time da área: em 2019, eram 300 profissionais. Agora são 4,5 mil. Até o final do ano, serão cinco mil.

Ao visitar grandes empresas de tecnologia, a direção da Ambev percebeu que era preciso promover uma profunda transformação digital.

Horai atuou na Amazon entre 2012 (quando a empresa tinha dez funcionários no Brasil) até 2019. Entrou para trabalhar na arquitetura de nuvem e se tornou líder da AWS para a América Latina. Em 2019, foi convocado pela companhia cervejeira, que tinha definido que seu futuro estava na tecnologia.

A direção da Ambev vinha fazendo visitas às grandes corporações do setor, como a própria Amazon e o Google, e percebeu que era necessário promover uma profunda transformação digital. “Esse era um ponto em que precisavam investir”, lembra-se Horai.

O posicionamento da Ambev e sua aposta na inovação estão na entrevista a seguir.

Como foi sua transição da Amazon para a Ambev?

Cheguei como CTO. Na Amazon, fiz muito papel de advisory de tecnologia para empresas, mostrando como elas precisavam se modernizar e utilizar dados para transformar o negócio. Em 2019, os CEOs da Ambev global (AB-Inbev) e do Brasil, Carlos Brito e Bernardo Paiva, me ligaram dizendo que, no último ano, a Ambev e a AB-Inbev acordaram para a tecnologia, percebendo que o futuro da companhia dependia disso.

O próprio Brito fez cursos no Vale do Silício, visitou empresas como Amazon, Facebook, Google e conversou com seus presidentes. Perceberam que era preciso investir e criar skills de tecnologia. Em 2019, antes de eu entrar, a Ambev comprou a HB Sis, uma fabricante de softwares de Blumenau, que era o maior fornecedor deles de tecnologia. Era uma aposta para o futuro. Fizeram outras aquisições e me trouxeram para liderar o crescimento de tecnologia na companhia.

Minha primeira pergunta foi sobre minhas metas no primeiro ano. A resposta foi que não sabiam e que eu deveria dizer em que faria sentido focar. Recebi quase um papel em branco. Vim para realizar a transformação para que a tecnologia passasse a fazer parte do negócio, admitindo que ela é essencial para o futuro, nos mais altos níveis. Participar desse momento de transformação em uma empresa reconhecida por executar bem esses movimentos e que quer investir é um sonho.

Caminhão de entrega movido a eletricidade (Crédito: DIvulgação)

Qual a importância da aquisição da HB Sis?

Na época, 90% dos trabalhos da HB Sis eram sistemas para a Ambev. Com a ideia de fazer tecnologia dentro de casa, o mais óbvio foi pensar quem era o maior fornecedor da companhia. Eles tinham cerca de 400 funcionários. Tinham o know-how dos processos da Ambev, conheciam a empresa e o negócio. Foi uma compra muito acertada.

Depois, aconteceram outras parcerias, como com a Menu, que começou o marketplace, a Get In [startup que tem um app de mesmo nome e que faz reservas em bares e restaurantes] e a Lemon, que é tecnologia para ajudar na questão da energia renovável [a startup orienta estabelecimentos a consumir energia de fontes limpas]. Fomos fazendo aquisições para ajudar no nosso ecossistema.

A Ambev não vai investir em novas aquisições?

A empresa vinha num modelo que comprava outras cervejarias em outros países. Adquiria, otimizava, trazia eficiência e continuava crescendo até o próximo país. Não tem como continuar fazendo isso, esse modelo de crescer pela aquisição se esgotou. Hoje, os investimentos são para nos ajudar no crescimento orgânico. São investimentos em tecnologia e em outras áreas.

Então, é possível dizer que Ambev já é uma empresa de tecnologia, além de ser uma empresa de marcas?

Hoje não há outra empresa de bens de consumo que faça

Crédito: Divulgação

tanto com tecnologia quanto nós. Nenhuma outra tem o Zé Delivery, ou um aplicativo B2B tão bem estabelecido como o Bees. Algumas têm, mas, quando se olha o número de downloads, adoção, tamanho, receita, nenhuma tem resultados tão significativos. Somos benchmark de tecnologia entre as companhias de bens de consumo. Por esse lado, já somos uma empresa de tecnologia. São 4,5 mil pessoas no time no Brasil e vamos chegar a 5 mil até o final do ano. Mais do que a Microsoft.

Você diz que a cerveja hoje é água, malte, lúpulo, tecnologia e dados. Por quê?

Em 2018, se você desligasse a tecnologia, a companhia continuaria operando, fazendo cerveja, vendendo e entregando. Hoje, a gente não iria vender nem entregar. Daqui a pouco, nem iria fabricar.

Todos os controles de qualidade são baseados em tecnologia. Antigamente, esse trabalho era manual. Olhava-se o valor que estava no equipamento e se anotava. Isso era feito uma ou duas vezes por dia, dependendo do equipamento. Hoje isso é tudo automático.

São dois milhões de data points das nossas cervejarias no Brasil. Temos visão em tempo real da qualidade da cerveja. Não se vê mais a média das últimas 12 horas. Sem tecnologia, dá para fabricar? Dá, mas esse controle se perde. Hoje, se desligar a tecnologia, a companhia para. Isso diz o quanto ela é fundamental para a empresa.

Quais são as principais plataformas de tecnologia associadas à cerveja na Ambev?

O Bees tem um investimento muito grande. É a venda B2B, é o relacionamento com o ponto-de-venda – digitalizamos tudo. Até 2019, era preciso um vendedor para tirar o pedido. Se o vendedor não passasse no PDV, não tinha como ser feito pedido de produto. Desde 2020, o bar é 100% independente. Quando quiser, na hora que quiser, ele faz o pedido. Atualmente, 30% dos pedidos são feitos fora do horário de expediente.

Crédito: Divulgação

O Zé Delivery é a primeira grande iniciativa de uma empresa de bens de consumo que chega direto ao consumidor. Antes, tinha intermediários, como restaurante e revendas. O Zé é o primeiro bem-sucedido nessa escala.

Investimos muito em logística: com o Bees, a logística não é mais fixa. Um milhão de PDVs podem fazer compras no mesmo dia. Para ter esse nível de independência em termos digitais, é preciso também melhorar a logística. Ela tem que ser mil vezes mais flexível e entregar em qualquer dia.

Então, a gente investiu muito em tecnologia por conta do avanço no e-commerce. E o portfólio aumentou, tanto em cervejas quanto na área de inovação.

Vão investir mais em 2023? Em 2025?

Demanda tem bastante. Por exemplo, a partir do momento em que digitalizamos a relação com o PDV, agora conseguimos ofertar crédito digital para o PDV. Antigamente era boleto, agora paga com Pix, se quiser. Ou negociar crédito. Tivemos de criar um time com capabilities de banco para o Bees [o Bees Bank opera no Brasil, com esse nome, desde o início do ano].

A companhia pode ter uma frente de fintech. Isso já está acontecendo. Carteiras digitais estão acontecendo como piloto. No México, dentro do Bees, começaram a vender crédito para cartão pré-pago. Está dando certo. O que isso abre de possibilidades? Podemos vender artigos digitais, serviços. Talvez a gente plugue a Lemon, que é de energia renovável, dentro do Bees.

Falando de futuro, em que áreas vocês estão colocando foco?

Em dados: com engenheiro de dados e cientista de dados.

Hoje, se desligar a tecnologia, a companhia para. Isso diz o quanto ela é fundamental para a empresa.

E também no setor de algoritmos. São apostas que têm se provado certas. Outro ponto que está começando a aparecer: profissionais de cyber segurança. Quatro anos atrás, não precisava de especialistas em segurança de informação, ou precisava pouco.

Hoje, Bees e Zé Delivery estão abertos para a internet, com um milhão de acessos em um dia. Ou seja, esse é um perfil de profissional em que vamos investir muito. Em computação em nuvem e em desenvolvimento e operações também, conforme vamos criando produtos digitais.

Com tudo isso, o que é a Ambev, então?

É algo novo que está surgindo. Realmente, hoje é uma companhia única. Uma empresa que produz, que tem marcas e presença digital forte e expressiva. Começamos a competir com e-commerces como Mercado Livre e Amazon.

Caminhão elétrico em Salvador (Crédito: Divulgação)

O Magalu foi agregando empresas e serviços, inclusive com produção de conteúdo. A Ambev pensa em seguir um caminho semelhante?

Acreditamos que sim. O Zé Delivery faz entrega de cerveja gelada, mas sua evolução é ser uma plataforma omnicanal. Ela pode conferir pontos quando você consumir o produto no bar. Se tiver um QR Code ou se escanear a nota fiscal, ganha pontos no aplicativo. Daí você pode pedir uma cerveja para entregar, pedir em outro bar ou trocar por algo no Pão de Açúcar. O Zé Delivery vai evoluir. Vamos testar coisas.

Depois de passar essa barreira, começamos a pensar em que situações de entretenimento a plataforma pode chegar, ou seja, estamos falando de conteúdo. Digamos situações como churrasco, futebol. Por que não se atrelar a alguém que faz isso bem? Isso pode ajudar a gerar conversão para o Zé Delivery. Esse mercado ainda vai mudar muito.

Fazemos parcerias com influenciadores que são “o novo portal de notícias”. Já estamos presente nesses “canais” e em festivais de música. Temos parceria com a Anitta. Ou seja, estamos presentes no entretenimento. Ainda não com geração de conteúdo formal, mas o mercado vai avançar muito nos próximos anos.


SOBRE A AUTORA

Lena Castellon é colaboradora da Fast Company Brasil. saiba mais