Apple inicia era da computação espacial: estamos prontos para o Vision Pro?
Dispositivo que mistura poder computacional do Macbook com realidade virtual abre espaço para o fim da barreira entre o mundo físico e as telas
No dia 5 de junho, a Apple anunciou seu primeiro headset de realidade mista, o Apple Vision Pro, em seu evento voltado para desenvolvedores, o WWDC. Chamado de “computador espacial”, o dispositivo promete integrar os espaços físico e digital a partir de um sistema que atende a comandos de voz, gestos e olhos. Será que o mundo criativo está pronto para viver sem telas?
A quebra das telas é preconizada por quem faz parte da indústria de realidade virtual (RV). Desde 2013, quando surgiu o primeiro headset de realidade aumentada – o Oculus Rift –, os criadores e entusiastas da tecnologia indicavam que o futuro viria a partir da convergência da interface digital no espaço físico.
A partir da biometria e do biofeedback (leitura de pupilas e gestos), o dispositivo da Apple leva a RV a um patamar mais próximo da naturalidade, como o touchscreen fez com o smartphone. A opção pela leitura dos gestos, e não pelos dispositivos acoplados a sistemas de RV que parecem joysticks, torna o uso da tecnologia menos nichado.
“É um dispositivo que pavimenta o caminho da massificação que a gente [do mercado de RV] sempre quis”, afirma Ricardo Laganaro, sócio e chief storytelling officer da Avore Immersive Experiences. Mas a massificação a que ele se refere não é a que vem a partir da venda em escala, mas a que acontece quando o tema e o formato ganham a atenção do público.
Até porque, o preço de início do Vision Pro é de US$ 3,5 mil e a produção dos primeiros dispositivos será limitada. O alto valor foi alvo de críticas e, para alguns, é tido como um dos fatores que vão dificultar a “decolagem” do produto. Nesse ponto, há semelhança com o iPhone.
Em 2007, quando foi lançado, o smartphone da Apple custava US$ 599, quase o dobro do valor médio dos aparelhos da BlackBerry. Na época, o preço gerou críticas e previsões sobre o futuro dos dispositivos móveis.
Logo depois da apresentação de Steve Jobs, o então CEO da Microsoft, Steve Ballmer, afirmou: “não há nenhuma chance de o iPhone conquistar uma parcela significativa do mercado, devido ao preço”.
Para Rodrigo Terra, diretor-executivo da Associação Brasileira de Realidade Estendida (XRBR), as soluções apresentadas pelo Vision Pro servirão para a indústria entrar em outro patamar: o da computação espacial.
Trata-se de um conjunto de tecnologias que mistura visão computacional, processamento e evolução dos sensores, transformando o mundo físico em dados inteligíveis pela máquina. Assim, o computador pode interagir com o meio.
Na demonstração do Apple Vision Pro, pessoas trabalhavam em um protótipo de carro de Fórmula 1 em tamanho real. O projeto não estava em uma tela, mas ali, projetado na frente dos usuários do Vision Pro, que conseguiam mexer e alterar o design com toques diretos que o computador pode entender e com os quais o dispositivo pode interagir.
Isso abre mercados, como o de aplicativos sensoriais e espaciais, aplicações que têm sentido no ambiente e que apoiam a realidade mista. “Não precisa ter tela. Os elementos digitais vivem no espaço físico, junto com as outras coisas. Tudo pode virar uma tela para se trabalhar”, afirma Terra.
O CORPO FALA
Durante a apresentação, o CEO da Apple, Tim Cook afirmou que o Vision é “o primeiro produto da Apple em que você olha através dele, não para ele”. Em formato de óculos de esqui, o dispositivo tem telas e sensores, como outros óculos de RV. O detalhe está em dois pontos: o chip M2 e o botão de dimmer na lateral.
A partir da biometria e do biofeedback, o dispositivo da Apple leva a RV a um patamar mais próximo da naturalidade.
O chip transforma o equipamento em um “notebook vestível” e o dimmer permite que o usuário aumente ou diminua a opacidade dos óculos. Em outras palavras, a pessoa consegue controlar o nível de imersividade enquanto usa o Vision. Pode parecer algo pequeno, mas resolve um problema dos dispositivos de RV: o grau de imersão e atenção exigido do usuário.
Os óculos de realidade aumentada “comuns” não dão escolha para quem usa: ou a pessoa está imersa na experiência, sem contato com o que acontece à volta dela, ou está no mundo físico desconectado dos óculos. Ao colocar o dimmer, a Apple criou um “dial de realidade”. “O digital e o físico ficam no mesmo conceito de realidade”, explica Terra.
A mudança não é só na tecnologia, mas no próprio paradigma do que significa a realidade física, que agora é misturada com o digital. Para Laganaro, o dimmer e a capacidade do aparelho de captar os gestos e a voz traz a dimensão física de volta para o jogo.
“Passamos dois séculos achando que, para pensar, precisaríamos estar sentados, olhando para um retângulo. Com essa tecnologia, o espaço conta, os gestos contam, o olhar conta. Ela traz o corpo de volta”, diz Laganaro.
Terra lembra de outro tema, que tinha saído de cena: o metaverso. O Vision Pro abre caminho para a vida imersiva no físico-digital, o que pode beneficiar o desenvolvimento do metaverso.
Quando a tecnologia coloca o digital e o físico no mesmo contexto, a relevância do que antes era apenas visto na tela passa a ser outra. Com os óculos da Apple, um objeto digital, como um quadro, pode ser visualizado na parede de casa, ao lado de posters físicos.
A criatividade entra nesse meio para captar possibilidades da realidade “hibrida” e também para construir experiências marcantes, que colocam a fisicalidade do usuário em primeiro plano.
OS DESAFIOS DA (OUTRA) REALIDADE
Outro uso do dispositivo de realidade mista é para entretenimento. Especialistas indicam, inclusive, que esse será o primeiro uso imediato do Vision Pro. Mas como pensar na arte como a conhecemos hoje sem telas? Alguns já testam as possibilidades narrativas e o que significa colocar a espacialidade no meio de uma experiência de vídeo e de história.
o dimmer e a capacidade do aparelho de captar os gestos e a voz traz a dimensão física de volta para o jogo.
É o caso de Lucas Abrahão, roteirista e diretor de cinema que está preparando o primeiro filme brasileiro em live-action para plataformas de RV. Chamado “O Olho”, o filme coloca o espectador no meio de um palco e, por ali, ele fica sabendo das histórias de quem está na plateia.
Para Abrahão, a experiência foi elucidativa sobre como será o futuro do audiovisual. “A lógica da narrativa é outra, a da edição também. É preciso pensar no que o espectador vai querer assistir, para que lado ele vai querer olhar durante o filme. Não tem mais a tela”, conta o cineasta.
Laganaro, que ganhou o Primetime Emmy em 2020 e o Festival Internacional de Cinema de Veneza com seu curta-metragem de realidade virtual “A Linha”, concorda que há espaço para a experimentação de narrativas na área. Principalmente na previsão de interatividade entre a narrativa e o espectador.
Os formatos ainda não estão prontos, principalmente no tempo de filmes. Dispositivos como os da Apple, por exemplo, podem tornar mais confortável a experiência da imersão por um período mais longo. Atualmente, a duração de um filme em realidade virtual de até meia hora.
“Não há uma linguagem definida. Parece muito a primeira fase do cinema, em que todo mundo ainda estava explorando, experimentando a linguagem para entender o que funcionava. Ainda não tem um formato de longa”, fala Abrahão.
Para Terra, a massificação da realidade virtual significa recriar o próprio conceito de “audiovisual”. “Teremos que criar uma um termo novo, talvez mídia multisensorial interativa.”.
Não serão apenas filmes, mas experiências (em lojas ou mesmo em sites) que precisarão ser espaciais, sensoriais e narrativas. Um dos demonstrativos do Vision Pro foi uma sessão de meditação. São novas possibilidades para a criação de narrativas espaciais.
“Nesse mundo que se abre, games precisarão fazer parte do repertório de quem cria e das marcas”, avisa Terra. A experiência será parte essencial do processo, é verdade. Mas a criatividade deverá ser sempre o motor dessa nova indústria.