As lições das escolas que proibiram o uso do celular por crianças e adolescentes

Depois de banir os aparelhos do ambiente escolar, instituições do Rio e de São Paulo apontam que alunos estão mais calmos, falantes e proativos

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Um pátio barulhento na hora do recreio. Grupos de adolescentes conversam e riem (alto). Dois times disputam uma partida de futebol. Em outra área, as bolas de vôlei voam de um lado para outro num campeonato improvisado.

Alguns leem. Outros preferem jogos de tabuleiro e de cartas. Não pode faltar aquele círculo de alunos revisando matérias para a prova da semana. Todos têm uma coisa em comum: ninguém está com celular.

Sim, estamos em 2024. O cenário se repete nas escolas brasileiras que proibiram, de vez, o uso do smartphone até mesmo nos intervalos. Para quem acompanha o dia a dia de crianças e adolescentes na era das redes sociais, essa cena significa que há esperança na batalha contra o chamado "extrativismo da atenção".

No final de 2023, a Organização das Nações Unidas se mostrou preocupada com o uso excessivo de smartphones nas escolas. Especialistas sugeriram que a simples proximidade de um celular era capaz de distrair estudantes e provocar impacto negativo na aprendizagem.

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E não é só dentro da sala de aula que o aparelho causa problemas. Sucesso nos Estados Unidos com o livro "A geração ansiosa", o psicólogo e professor Jonathan Haidt liga as redes sociais e as telas ao aumento de casos de ansiedade, depressão, automutilação e solidão entre os muito jovens.

"O celular é um bloqueador de experiências. O ambiente em que as crianças e adolescentes crescem hoje é hostil ao desenvolvimento humano", afirmou Haidt, em artigo publicado na "The Atlantic" em março.

As escolas brasileiras confirmam. A ideia de proibir os celulares parecia radical, mas trouxe melhora na qualidade de vida, na saúde mental e na cognição dos estudantes.

EFEITOS POSITIVOS

"Em 2021, cheguei na escola e observei uma mesa com quatro adolescentes, todos diante de telas. Perguntei se eles não aproveitam o recreio para conversar e eles disseram que estavam no WhatsApp", conta a diretora do Instituto GayLussac, Luiza Sassi.

Com 70 anos de história, a escola tradicional de Niterói, no Rio de Janeiro, tomou a decisão de proibir seus quase 1,5 mil alunos de usar o celular nas dependências do colégio lá em 2022.

A retirada dos aparelhos não só melhorou o desempenho acadêmico dos alunos como também alterou positivamente a forma como eles se relacionam. Trouxe mais vida para a escola. Mais olho no olho.

telas e redes sociais estão associadas ao aumento de casos de ansiedade, depressão, automutilação e solidão entre os muito jovens.

O mesmo efeito foi percebido na Escola Alef Perez, instituição paulistana com mais de 910 estudantes do ensino fundamental e médio. A escola baniu o uso de celulares no começo deste ano. Os aparelhos são guardados em pochetes específicas, que impedem o uso durante o período escolar.

De acordo com Aline Leite Barreto, coordenadora educacional e pedagógica do Alef Perez, os alunos estão mais "presentes" nas atividades. "Quando perguntamos, eles dizem preferir ficar sem o celular e que se sentem mais calmos e atentos. Eles passaram a conversar mais, de fato", diz Aline, ao apontar que eventos presenciais, como os jogos interclasses, ganharam mais alunos.

No Ginásio Educacional Olímpico (GEO) Reverendo Martin Luther King, colégio municipal localizado na zona norte do Rio de Janeiro, outra melhoria foi notada neste primeiro semestre da política "Zero Celular": proatividade.

Segundo a coordenadora pedagógica do GEO, Thaís Trindade, os 500 estudantes estão se movimentando mais, inclusive no sentido de buscar outras atividades. "Eles procuram corda, jogos de tabuleiro, pedem para usar salas e fazer revisão, estão conversando entre si e os atritos que havia por conta de redes sociais reduziram drasticamente", conta Thais.

ERROS E ACERTOS

Embora os resultados tenham vindo mais rápido do que as pedagogas previam, houve, sim, um período duro de adaptação às novas regras. O GEO Martin Luther King, por exemplo, agiu depois de uma decisão municipal publicada em janeiro. A cidade do Rio de Janeiro foi a primeira do Brasil a banir o uso de smartphones no ambiente escolar.

Os educadores testaram estratégias para fazer a retirada dos aparelhos sem gerar desagrado. A primeira foi pedir para os estudantes colocarem os celulares na mesa dos professores em cada aula. Na segunda tentativa, foi pedido que eles fossem desligados e guardados nas mochilas.

A coordenadora, que se orgulha de saber o nome e o apelido de cada um dos 500 alunos do GEO, diz que foi essencial fazer rodadas de conversas com os adolescentes a cada mudança de proposta. Foi assim que a escola encontrou o modelo que funciona para sua comunidade: uma caixa fechada para guardar os aparelhos.

Crédito: Yondr

No Alef Perez, a estratégia de usar as pochetes Yondr – que bloqueiam o acesso ao smartphone, mas ficam em posse do estudante – foi pensada no ano passado. A questão foi a adaptação dos alunos (e dos familiares) para conseguirem ficar sem o contato em tempo real proporcionado pelo smartphone.

No primeiro mês da proibição, a secretaria da escola mais parecia uma central de telefonia. Muitos alunos pediam para ligar para os pais para combinar horários de saída e de compromissos depois da escola, como idas ao dentista. Já no segundo mês, a procura zerou.

"Foi muito bom porque essa necessidade de saber de tudo, estar o tempo todo atualizado, é um dos problemas que o digital trouxe para a gente", aponta Aline. Para ela, houve ganho de autonomia por parte dos adolescentes e pré-adolescentes.

ENXUGANDO GELO

Um ano depois do "Zero Celular", agora o Instituto Gay Lussac quer conscientizar as famílias. A escola indica que o uso do celular só deve ser liberado para maiores de 12 anos e que as redes sociais só sejam acessíveis a partir dos 16 anos.

A indicação está em linha com o recém-lançado Movimento Desconecta, uma iniciativa de pais, mães e especialistas que defendem que crianças até 14 anos não tenham smartphones. A recomendação do grupo é considerar a troca do smartphone por um aparelho de simples, sem internet.

Para uma parte dos brasileiros, deixar a criança sem celular significa privá-la de estar no ambiente digital.

O Movimento Desconecta criou um guia para abordar o tema de excesso de telas com as crianças. Mas, para a educadora e autora Sheylli Caleffi, que colaborou na elaboração do guia, a conversa mais difícil é com os adultos.

"Não adianta dizer para a criança não usar o celular se você fica no telefone o tempo inteiro. Como adultos, se não reconhecermos que somos viciados em celular, fica difícil explicar isso para a criança ou para o adolescente", argumenta.

Embora seja a favor da opção sugerida pelo Movimento Desconecta, Sheylli reconhece que o celular pode ser imprescindível em alguns casos. Para uma parte dos brasileiros, deixar a criança sem celular significa privá-la de estar no ambiente digital.

De acordo com a pesquisa TIC Domicílio, 62% da população acessa a internet exclusivamente pelo celular. Quando o corte é por classe social, a pesquisa mostra que 84% das classes D/E usam unicamente dispositivos móveis para entrar na web.

CONVERSAR, SIM; PROIBIR, TAMBÉM

Que é preciso controlar o uso de telas por crianças e adolescentes todos concordam. A questão é como colocar isso em prática. A saída, acreditam os especialistas, é conversar e ensinar o que significa este aparelho que ganhou tanta importância no nosso dia a dia. E deixar bem claro que internet é uma coisa e rede social é outra.

O GEO Martin Luther King abriu espaço para falar sobre o tempo de tela em sala de aula. Recentemente, a escola fez um workshop sobre o tema com os estudantes, mostrando a eles como verificar o tempo que passam no celular.

"Mesmo sem poder usar o aparelho das 7h30 às 15h30, que é o horário da escola, tem aluno que passa 12 horas na tela, segundo esse indicador. Eles se surpreenderam muito", conta Thais.

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Para Aline, do Alef Perez, diálogo não basta; é preciso proibir. "Não tem uso menor, não tem uso regrado, não funciona. A gente fica enxugando gelo. É uma guerra e existe uma indústria gigante que trabalha para corromper nosso tempo e nossa atenção. Não dá para vencer só na conversa", acredita.

De olho nessas experiências, legisladores começam a fazer a lição de casa. Na esteira da capital fluminense, o Rio Grande do Norte aprovou uma regra para banir os smartphones de ambientes escolares. Em São Paulo, projeto de lei da deputada estadual Marina Helou (Rede) está tramitando na Assembleia Legislativa.

Para as escolas que adotaram a “opção radical", há uma certeza: é um caminho sem volta. Proibir o celular, pelo menos no ambiente escolar, trouxe benefícios surpreendentes em pouco tempo. A hora do recreio agradece. O futuro também.


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