Brasil cria marco inédito de proteção digital infantil
Lei quer proibir plataformas de analisar o comportamento de crianças e adolescentes para segmentar anúncios de publicidade

O Brasil está a um passo de ter uma lei pioneira de proteção a crianças e adolescentes no ambiente digital. Apelidado de ECA Digital, o projeto de lei 2628/2022 passou pelo Senado nesta quarta-feira (27) e agora segue para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se confirmada, a norma será a primeira do mundo a proibir que plataformas analisem o comportamento de crianças e adolescentes para segmentar anúncios de publicidade, uma prática comum no modelo de negócios das big techs.
Com 16 capítulos e 41 artigos, a lei restringe a monetização de conteúdos que explorem ou hiperssexualizem menores, além de exigir que as plataformas, como redes sociais e jogos, tenham verificação etária. Entre as obrigações estão configurações padrão mais protetivas, ferramentas de supervisão parental e relatórios semestrais de transparência sobre riscos e medidas de mitigação.
Para Yasmin Curzi, advogada e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) Rio, o texto inaugura uma nova era de responsabilidade para as plataformas. “A nova lei vai finalmente estabelecer deveres de prevenção, de informação e de segurança para as empresas que fornecem produtos e serviços digitais”, diz.
PARTICULARIDADE DO TEXTO DO BRASIL
O Reino Unido e a Austrália acabaram de aprovar leis de proteção a adolescentes na internet. Embora a lei brasileira siga a mesma estrutura dessas regulamentações, ela acrescenta um ponto que a torna inédita no mundo: proibição do perfilamento, ou seja, o rastreamento do comportamento de menores nas plataformas para direcionar publicidade. De acordo com o codiretor da Data Privacy Brasil, Rafael Zanatta, a lei trata-se de uma “vitória monumental” em um cenário de resistência global à regulação.
“Nenhum país havia implementado essa vedação de forma expressa, nem mesmo a União Europeia com o DSA. O artigo que proíbe o perfilamento de crianças e adolescentes rompe com um modelo de negócios baseado na coleta e exploração massiva de dados comportamentais para aumentar tempo de tela e retenção”, explica.
O ECA Digital ganhou outro apelido nas últimas semanas: o PL contra a “adultização” das crianças. O assunto ganhou força e mais espaço no âmbito político após o vídeo do youtuber Felipe Bressanim Pereira, mais conhecido como Felca, publicado no último dia 6 agosto. Na ocasião, ele denunciou a exploração de menores na criação de conteúdo digital.
IDENTIFICAÇÃO ETÁRIA
A lei também estabelece que redes sociais, aplicativos e jogos com acesso provável por menores adotem sistemas confiáveis de identificação etária, certificados pelo poder público. Essa medida, no entanto, traz desafios já vistos em outros países. No Reino Unido, por exemplo, a implementação de regras semelhantes resultou na alta do uso de redes privadas, como VPNs. Na Austrália, ainda está em discussão qual tipo de tecnologia será colocada no ar para evitar que menores de 16 anos acessem redes sociais.
No Brasil, ainda não está claro como essas soluções serão aplicadas. O texto proíbe que os dados coletados para verificação de idade sejam usados para outros fins, em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Mesmo assim, especialistas alertam para riscos técnicos e sociais. “Qualquer sistema de verificação envolve coleta e tratamento de dados sensíveis, e isso traz riscos de vazamentos”, explica Yasmin Curzi.
“Além disso, a forma como essa verificação será feita, seja por biometria, documentos ou inteligência artificial, precisa ser muito bem definida para evitar problemas de hipervigilância ou exclusão digital de famílias com menos acesso à documentação adequada.”
Outro ponto central do ECA Digital é a exigência de transparência. As plataformas com mais de um milhão de usuários terão de publicar relatórios semestrais com informações detalhadas sobre riscos, denúncias recebidas e medidas implementadas para proteção de crianças e adolescentes.
Em caso de descumprimento das obrigações previstas na lei, os infratores ficam sujeitos a penalidades que variam de advertência, multas que podem chegar a R$ 50 milhões, suspensão temporária de atividades e até a proibição definitiva das atividades no país.
EFEITO TRUMP?
Para Yasmin, a lei cria um primeiro arcabouço para exigir responsabilidade e accountability das plataformas, mas pode ser mais eficiente com outras ferramentas, como regulamentação de redes sociais. “A sua efetividade seria ainda mais assertiva se tivéssemos uma regulamentação robusta a partir da capacidade de fiscalização ativa (como auditorias) para enfrentar a resistência das big techs em se adequarem à legislação brasileira", afirma.
A possibilidade da lei colocar mais lenha na fogueira de Donald Trump existe. Na última segunda-feira (25), o presidente americano informou em sua rede social, Truth Social, que vai “enfrentar os países que atacarem as empresas de tecnologia americanas”. Impostos digitais, legislações de serviços digitais e regulamentações de mercado são, na visão do republicano, instrumentos para “prejudicar e discriminar a tecnologia americana”.
“Coloco todos os países que aplicam impostos, legislações, regras ou regulamentações digitais em alerta de que, a menos que essas ações discriminatórias sejam removidas, eu, como presidente dos Estados Unidos, vou impor tarifas adicionais substanciais sobre as exportações desses países para os EUA e instituir restrições de exportação sobre nossas tecnologias e chips altamente protegidos", afirmou Trump.
SEM CAIXA DE RECOMPENSA
O impacto da lei será sentido também no setor de games, especialmente em plataformas populares entre crianças e adolescentes, como Roblox, Fortnite e Brawl Stars. A lei proibe a distribuição de caixas de recompensas, as “loot box”, recurso em que o jogador paga para abrir prêmios aleatórios ou vantagens no jogo.
“As empresas de jogos vão ter que repensar o desenho de seus produtos. Quem não se adequar corre o risco de enfrentar processos no Brasil ou até de deixar de oferecer determinados serviços no país”, avalia Rafael Zanatta, codiretor da Data Privacy Brasil.
Outro capítulo importante do projeto regula a supervisão dos pais ou responsáveis no uso das redes sociais por adolescentes. Segundo o texto, as plataformas devem “disponibilizar configurações e ferramentas acessíveis e fáceis de usar que apoiem a supervisão parental”. Situações como a do TikTok, que permite qualquer usuário, até mesmo os não logados, de acessarem a seu conteúdo, não serão permitidas.
ALERTA DA ANATEL!
Apesar do consenso em torno da urgência da lei, um ponto aprovado de última hora gerou preocupação entre especialistas. Uma emenda incluiu no texto a possibilidade de a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) determinar ordens de bloqueio técnico e de remoção de conteúdos.
Para Rafael Zanatta, essa mudança acende um alerta sobre os riscos de concentração de poder. “Essa atribuição de competência técnica para a Anatel não passou por discussões aprofundadas e pode comprometer o modelo multissetorial que sempre guiou a governança da internet no Brasil”, explica.
Ele lembra que, historicamente, a Anatel atua apenas na infraestrutura de telecomunicações, enquanto a camada lógica da rede, que envolve conteúdo e tráfego, sempre foi administrada por órgãos como o Comitê Gestor da Internet (CGI.br).
Com a lei prestes a ser sancionada, plataformas terão um ano para se adaptar às novas regras. O desafio agora será garantir que a implementação ocorra de forma eficiente, com fiscalização efetiva e diálogo entre governo, sociedade civil e setor privado. Enquanto o Brasil se posiciona como referência global em proteção digital infantil, o texto também inaugura uma fase de debates