Brasil tem muito a aprender com o apagão cibernético

Pane global é um alerta sobre cibersegurança. Soberania da infraestrutura de tecnologia é tema urgente para o país

Crédito: Fast Company Brasil

Camila de Lira 4 minutos de leitura

Um erro na atualização de um arquivo foi responsável pelo cancelamento de 5,6% dos voos no planeta, gerando caos nos aeroportos e problemas em outros serviços.

O apagão cibernético desta sexta-feira expôs a vulnerabilidade da infraestrutura de tecnologia mundial. E levanta um alerta vermelho para o Brasil. 

O sistema de antivírus da CrowdStrike travou os computadores e servidores que utilizam o Windows e o serviço de computação em nuvem Azure, da Microsoft.

A companhia de cibersegurança tem quase 300 das 500 grandes companhias do mundo como clientes. Do outro lado, a nuvem da Microsoft concentra 25% do mercado de infraestrutura global. 

No Brasil, os sistemas internos do Supremo Tribunal Federal (STF) ficaram instáveis. Plataformas do Hospital das Clínicas de São Paulo, maior complexo hospitalar público da América Latina, ficaram fora do ar por algumas horas. Bancos como Bradesco, XP Investimento e Next tiveram interrupções no funcionamento. 

"Com certas coisas, certos conjuntos de ações, em certas empresas e durante certas sincronias, a gente consegue parar o mundo. É uma surpresa que tivemos hoje e pode acontecer de novo", afirma o cientista-chefe da TDS Company e um dos fundadores do Porto Digital, Silvio Meira.

Silvio Meira

Para Meira, o cenário de concentração de tecnologia é mais do que preocupante. É aterrorizante, pois cria uma situação em que a população fica vulnerável a erros pequenos de grandes sistemas. 

É o caso do sistema operacional da Microsoft. Ele é usado em mais de 70% dos computadores do mundo. "Cinco empresas concentram o mercado. Repare o enorme poder econômico que elas têm, a ponto de criar problemas no mundo inteiro em poucas horas. Elas são os mediadores das atividades tecnológicas do planeta", afirma Sérgio Amadeu, sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC). 

A falha que afetou as máquinas da Microsoft traz reflexões sobre a necessidade de políticas tecnológicas no país.

Amadeu já foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), onde liderou o movimento do uso do sistema Linux e do software livre pelo governo federal. Com código aberto, o software livre é um modelo de programação disponível para todos e distribuído sem visar lucros.

Até meados de 2010, a política era incentivada dentro dos órgãos públicos. O movimento sofreu uma baixa no governo de Michel Temer. Em 2016, o então presidente comprou licenças da Microsoft para a administração pública federal e de universidades. 

SOBERANIA NACIONAL

Um dos motivos que levou ao erro da CrowdStrike foi a possível falta de testes com a atualização do sistema. 

"A falha que afetou as máquinas da Microsoft e os servidores com operações importantes no mundo traz reflexões sobre a nossa necessidade urgente de políticas tecnológicas no país", comenta Amadeu. A questão principal a ser levantada é: uma empresa de fora da jurisdição brasileira deveria ter acesso a tantos serviços sensíveis para a população? 

a concentração em poucas empresas de tecnologia cria uma situação em que ficamos vulneráveis a erros pequenos de grandes sistemas.

Outras perguntas seguem. Um órgão privado, de um país estrangeiro, poderia puxar o plugue e desligar serviços essenciais no Brasil? Se estamos falando de um futuro conectado, quem vai poder ligar e desligar essas conexões?

Todas as respostas passam pela discussão sobre soberania nacional na tecnologia. "No lugar de ter dinheiro para privilegiar big techs, o governo deveria colocar nas universidades para investir em soluções nacionais", afirma.

Na visão do ativista hacker e especialista em códigos abertos Pedro Markun, o Brasil precisa se debruçar sobre esse assunto. O apagão global acendeu um alerta, diz Markun. "Um alerta de que a gente não pode ficar dependente de infraestruturas de fora para sistemas críticos", aponta. 

E A IA?

Assim como os serviços de hospedagem em nuvem, a inteligência artificial tem capacidade para servir de base para aplicações diversas. Apesar de novo, esse território já está sendo controlado por poucas empresas: OpenAI, apoiada pela Microsoft, Meta e Google. 

Recentemente, a Meta foi multada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O motivo foi o uso de dados sensíveis de brasileiros para alimentar sua plataforma de inteligência artificial generativa. Esta semana, a empresa suspendeu os recursos dessa tecnologia no país.

"Imagina se essa tecnologia estivesse embarcada de forma estruturante em uma aplicação crítica? A gente fica refém", aponta Markun.

     

    Falar sobre soberania nacional em tecnologias significa tratar sobre políticas para investir em um plano nacional de investimento envolvendo empresas brasileiras, a academia e o governo.

    Segundo Sérgio Amadeu, a ação precisa ser coletiva, capitaneada pelo governo. "Se não, não teremos um futuro promissor. Seremos exclusivamente usuários de produtos de modelos construídos pelas big techs", alerta.

    Ou seja, uma falha poderá derrubar tudo. De novo.


    SOBRE A AUTORA

    Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais