Como a regulamentação da publicidade pode ajudar no combate à epidemia das bets
O que as restrições à propaganda de cigarro no Brasil têm a ensinar sobre como minimizar o estrago causado pela liberação das apostas online
Endividamento das famílias, gastos bilionários, vício aumentando. O Brasil corre contra o tempo para reduzir os danos causados pelo crescimento desenfreado das apostas online, as bets. Regulamentação do setor, da publicidade online e dos patrocínios dos sites de apostas são apenas o tempo de um jogo que o país já começou perdendo.
Levantamento feito pelo Banco Central mostra que o volume mensal de transferência via Pix para empresas de apostas variou entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões ao longo do ano passado. Só os beneficiários do Bolsa Família enviaram R$ 3 bilhões para bets em um mês. A consultoria PwC aponta que 40% dos apostadores são da classe D e E. As bets já representam 38% dos gastos das famílias brasileiras com cultura e lazer.
Outro estudo mostra que os brasileiros gastaram R$ 68 bilhões em sites de apostas e cassinos online, e ganharam R$ 44,3 bilhões. Ou seja, uma perda de quase R$ 24 bilhões. Os números foram levantados pelo Itaú Unibanco, que ainda estimou que o setor de apostas online movimenta 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB).
Pesquisa do Instituto Locomotiva revela que 86% dos apostadores brasileiros têm dívidas - isso não significa que as dívidas foram causadas por causa das apostas. As empresas de apostas esportivas e cassino online seguem investindo alto no país. “O Brasil cavou o poço e agora começamos a descer”, afirma o pesquisador e psicólogo Altay de Souza.
Para não bater no fundo, o país terá que agir rápido. Na última semana, o ministério da Fazenda adiantou a regulamentação das bets, que seria feita apenas no começo de 2025. Agora, como já ocorreu com o cigarro e a bebida alcoólica, os olhos recaem sobre a publicidade.
Estima-se que o setor de apostas online tenha investido de R$ 5,8 bilhões a R$ 8,8 bilhões em marketing no Brasil entre 2023 e 2024 – o que equivale a algo entre 50% e 75% da receita total das bets. Se a propaganda é prioridade para o crescimento dos jogos de apostas online, ela também é prioridade quando o assunto é proteger a audiência.
De acordo com dados da Kantar Media, entre janeiro e agosto deste ano, as bets investiram R$ 2,3 bilhões em publicidade em rádio e televisão. Desde o ano passado, o segmento é o maior anunciante do país.
NÃO SOMOS OS ÚNICOS
O Brasil não é o único a lidar com a explosão das bets. Na Austrália, o número de apostadores esportivos dobrou nos últimos cinco anos e um terço do gasto nesses sites é feito por pessoas viciadas em jogos. Diante desse cenário, o parlamento australiano iniciou um processo para proibir a publicidade de jogos de azar e sites de apostas.
O Senado do país fez um dos primeiros estudos oficiais que, de fato, indicam que proibir a publicidade de bets tem efeitos positivos. No documento, o cenário desenhado é de uma geração arrasada pelo vício em jogo. Proibir a publicidade seria pensar na proteção das crianças.
As bets já representam 38% dos gastos das famílias brasileiras com cultura e lazer.
Na França, é vetado que grandes astros dos esportes e influenciadores façam publicidade de bets esportivas. Tomada no ano passado pelo governo francês, a decisão foi chamada de "regra do exemplo": celebridades que possam servir de exemplo para os mais jovens estão banidas da publicidade de apostas.
No Reino Unido, onde as apostas são reguladas por um órgão próprio do governo, houve proibição de uso de cartões de crédito para as bets – medida que o Brasil replicou na regulamentação atual. Nas terras britânicas as apostas se estendem até eventos não esportivos. Por lá, o parlamento discute cobrar das empresas uma taxa para pagar o tratamento do viciados em jogos.
POR FAVOR, NÃO FUME
Entre as referências internacionais, o Brasil pode servir como exemplo para o Brasil. O país é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como modelo mundial no combate ao tabaco. No meio dos anos 90, quase 30% da população brasileira fumava. Em 2006, o número caiu para 15,7% (hoje em dia, são menos de 10%).
Nesse período, duas leis de restrição à publicidade de cigarro foram aprovadas. A primeira, em 1996, limitava a propaganda em rádio, televisão e revistas. A segunda, aprovada no final dos anos 2000, foi mais agressiva: proibia a veiculação de anúncios de tabaco, bem como vetava o patrocínio de marcas de cigarro a eventos esportivos e culturais.
Em 2001, o Brasil foi o segundo país do mundo a adotar a advertência em imagens na embalagem dos cigarros.
Na visão de especialistas, as apostas online precisam ser tratadas da mesma forma. “A regulamentação para as bets precisa ser igual à do cigarro”, diz o CEO da NewVegas, Ian Black. O próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o governo tem esse objetivo.
Até agora, no entanto, as ações contra o vício em jogos não se assemelhavam com o combate ao tabagismo. Em janeiro, o Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) aprovou o Anexo X, uma série de regras para a publicidade de apostas esportivas.
As diretivas tratam sobre a aposta responsável, voltada para maiores de 18 anos. Além disso, há uma recomendação para que as empresas de apostas não associem a propaganda de seus serviços ao enriquecimento rápido ou ao sucesso. Exige-se também que as bets façam uma advertência sobre o vício em jogos.
Para o professor e coordenador do curso de comunicação social da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), Eric Messa, esse é um começo que deve levar a publicidade do setor a ficar cada vez mais regulada, como acontece com a indústria farmacêutica.
Messa, no entanto, não acredita que as bets sejam regulamentadas como o setor tabagista no curto e médio prazo. “Ainda precisarão ser feitos mais estudos para demonstrar como esse negócio causa malefícios à sociedade”, diz o professor.
Estima-se que o setor tenha investido de R$ 5,8 bilhões a R$ 8,8 bilhões em marketing no Brasil entre 2023 e 2024.
Nos anos 90, profissionais e associações da área da saúde pressionaram para apoiar a proibição da propaganda de cigarro. Hospitais como o Instituto Nacional do Câncer, a Associação Brasileira de Cardiologia e a Associação Médica Brasileira participaram de audiências públicas. Pesquisas sobre o impacto do veto da publicidade na redução do consumo de fumo foram usadas para embasar a regulamentação.
Tal situação não está se repetindo nas discussões sobre as apostas online. Levantamento da Folha de S.Paulo mostrou que, para criar as regras de “jogo responsável”, o ministério da Fazenda se reuniu 251 vezes com as empresas de apostas e somente cinco com profissionais de saúde.
“Se para reduzir o consumo de cigarro precisamos dos médicos, agora precisamos que psicólogos sejam escutados”, diz Altay de Souza.
SEM NOME NO MEU ESTÁDIO
De acordo com a Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), 63% dos apostadores chegaram a comprometer até o orçamento doméstico com apostas. Os jogos online se dividem em dois tipos: os cassinos, como o jogo do tigrinho, e as apostas esportivas, como o caso das bets.
Segundo Souza, os estímulos no cérebro são parecidos nos dois casos. As bets tendem a ser mais perigosas para o público, diz Altay, uma vez que dão a ilusão de que há algum controle por parte de quem aposta.
O fã de futebol acha que consegue prever o resultado do jogo. “A propaganda no jogo faz a gente naturalizar, começa a ficar comum olhar as bets”, diz Altay.
A Premiere League, o campeonato inglês de futebol, vetou sites de apostas nas camisas dos times. No Brasil, 33 clubes se uniram contra uma proposta que proibia bets de patrocinar equipes esportivas. Casas de apostas patrocinam 19 dos 20 clubes da série A de 2024, em contratos de patrocínio que passam dos R$ 630 milhões, valor 89% maior do que 2023.
O avanço vai para além dos patrocínios. Empresas de bets compraram o “naming right” de estádios como a Arena Fonte Nova, na Bahia, e a Arena das Dunas, no Rio Grande do Norte. Elas também patrocinam jogos do campeonato brasileiro e programas de televisão, como o Big Brother Brasil.
Nesse sentido, já existem projetos de lei para proibir o patrocínio a clubes, eventos esportivos e culturais, como o PL 3.563/2024, proposto pelo senador Randolfe Rodrigues (PT-AP). O documento está em tramitação no Senado.
NÃO É SÓ PUBLICIDADE
Para João Branco, conselheiro da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) e ex-CMO do McDonalds, a conversa não é apenas sobre marketing, mas sobre modelo de negócio. “Qual é o limite do que um `jogo de azar` pode fazer?”, questiona.
o Brasil foi o segundo país do mundo a adotar a advertência em imagens na embalagem dos cigarros.
Mesmo com todos os avisos publicitários, o jogo de apostas online pode ser construído para levar a pessoa a consumir mais e mais. Como garantir que os serviços sejam responsáveis? No momento, boa parte da indústria usa o discurso da educação financeira, colocando o ônus do uso correto do sistema nos usuários.
O “jogo responsável” depende também da transparência do sistema. Se a pessoa que está jogando não entende como funciona o algoritmo que dita a probabilidade e a quantidade de ganhos, como poderia fazer uma decisão informada?
Mesmo com educação financeira e informação transparente para todos, ainda existe outro fator: o impacto negativo no cérebro. “A pessoa entender que fumar faz mal não deixa de lesionar o pulmão dela”, compara Altay.
Está na hora de o Brasil parar de fumar. De novo.