Das telas às clínicas: filtros hiper-realistas estimulam busca por beleza inatingível
A popularização dos filtros “embelezadores” de redes sociais aumenta a procura por cirurgias plásticas e se torna mais um fator de vulnerabilidade, principalmente entre jovens
Uma mulher jovem chega no consultório do cirurgião plástico, mostra o smartphone para o médico e pede: “quero ficar desse jeito”. A imagem que aparece na tela não é a de uma atriz ou modelo famosa, mas uma selfie completamente modificada por filtros do Instagram e do TikTok.
Histórias como essa fazem parte do cotidiano de dermatologistas e cirurgiões plásticos e atestam que os filtros já alteraram a relação que temos com o espelho.
O que se vê refletido nas selfies e nos vídeos curtos das redes sociais não é o que a pessoa encontra quando se vê no espelho físico. E isso incomoda. Mais de 60% dos brasileiros afirmam conhecer alguém que já deixou de sair de casa pois não quer ser visto sem os filtros de imagem, indica pesquisa feita pela Allergan Aesthetics. O levantamento apontou que 40% usam filtros nas próprias fotos com frequência para parecerem mais bonitos nas postagens.
Os efeitos de realidade aumentada (RA) criam uma simulação do rosto da pessoa em tempo real. O resultado é tão palpável que distorce a própria noção do que é realidade e o que é simulacro.
Quem explica é a professora e pesquisadora Sandra Portella Montardo, autora do livro “Selfies: Subjetividade e Tecnologia”. “As pessoas passam a se basear na selfie, que é uma visão distorcida”.
A manipulação das fotos muda a referência de beleza de cada um e levanta ainda mais a barra do padrão inatingível, acrescenta a diretora médica da Allergan, Camila Cazerta. A pele sem texturas ou marcas, por exemplo, é algo impossível de se conseguir.
“A pele normal tem poros, tem textura. Não existe essa pele perfeita. As pessoas se comparam com a alteração aplicada no rosto e não é uma comparação justa”, aponta Camila.
Os efeitos visuais são uma parte do arsenal de produtos que as big techs oferecem para aumentar o engajamento e o alcance dos conteúdos.
A insatisfação chega até a transformação, de fato, do rosto. De acordo com a Associação Americana de Cirurgia Plástica Facial, 79% dos médicos identificaram que seus pacientes optaram por procedimentos com objetivo de melhorar a aparência para vídeos e selfies. Além disso, em 2022, houve alta no número de pessoas com menos de 30 anos em busca de preenchimentos faciais e botox preventivo, segundo a associação.
Atualmente, Sandra estuda filtros e impactos no que chama de “plataformização da beleza”. Em uma de suas linhas de pesquisa, a professora da Universidade Feevale analisou os principais filtros do Instagram e fez uma correlação com os tipos de cirurgia mais populares entre meninas de 13 a 18 anos no Brasil. “Há coincidência entre o que é solicitado pelas pessoas e o que aparece nos filtros”, afirma.
Este fenômeno foi apelidado de “Snapchat Dysmorphia”, ou “dismorfia do Snapchat”. O termo faz referência à rede que começou a onda dos efeitos nas imagens, em 2015.
Dismorfia corporal, por sua vez, é um transtorno psicológico em que há obsessão com pequenos detalhes do corpo e percepção negativa em excesso, levando a uma desconexão entre a aparência física e a maneira como a pessoa se enxerga. Com o tempo e o uso das ferramentas online, surgiram terminologias como “Zoom Dysmorphia” e “TikTok Dysmorphia”.
Os filtros permitem que editemos nossa própria imagem na tela. Em alguns casos, como nos efeitos “beauty” das câmeras de celular, a pessoa nem mesmo tem ideia de que o rosto está passando por modificações “sutis”.
Efeitos como Bold Glamour, do TikTok, conseguem acompanhar os movimentos do rosto, sem distorcer ou parecer “falso”. Fica difícil aceitar a imagem que aparece no espelho depois.
NO FILTER, YES FILTER
Há 20 anos, o impacto do uso de Photoshop e de manipulações de imagem na autoestima das mulheres já preocupava. Nessa época, a Dove criou a campanha Real Beleza, na qual incentiva mulheres a encarar e amar aquilo que veem no espelho. Atualmente, a marca trabalho o posicionamento #turnyourback, contra o uso do filtro Bold Glamour do TikTok.
“É inevitável falar de beleza real sem citar o ambiente das redes sociais”, afirma Thaís Hagge, líder de beleza e bem-estar da Unilever Brasil.
Um dos alertas que a marca quer levantar com esta campanha é sobre a crise de saúde mental desencadeada pelo uso de redes sociais e pela exposição a conteúdos tóxicos de beleza. Segundo pesquisa do Projeto Dove Autoestima, a cada 100 jovens com idade entre 10 e 17 anos, 97 foram expostos a esse tipo de conteúdo.
A companhia encabeçou a criação do movimento #ContratoSemFiltro, que firmou compromisso com influenciadores e celebridades para não usarem filtros em suas redes e em campanhas.
Outros movimentos tentam alertar sobre o impacto dos filtros, como a campanha #filterdrop, preconizada pela maquiadora britânica Sasha Pallari e pela professora primária Katie McGrath.
Em 2020, a professora recebeu o pedido de ajuda de uma das mães de suas alunas. Em um e-mail, a mãe confessou que a criança estava com problemas para aceitar sua imagem e que queria usar maquiagem todos os dias. O que fez Katie levar o assunto às redes sociais foi o fato da aluna em questão ser uma garotinha de quatro anos de idade.
SEM MODERAÇÃO
Os efeitos visuais podem parecer simples, mas utilizam a tecnologia mais refinada de inteligência artificial do momento: as redes adversárias generativas (GAN).
Na prática, a tecnologia usa deep learning para regenerar cada pixel da imagem com base em uma outra base de dados. Assim, os filtros conseguem não só modificar um rosto como também entender as imagens e mudá-las com o tempo. Ou seja, quanto mais a tecnologia melhora, mais verossímeis ficam os efeitos.
A manipulação das fotos muda a referência de beleza de cada um e levanta ainda mais a barra do padrão inatingível.
Geralmente, os filtros de “beleza”, tanto do TikTok quanto do Instagram, suavizam a aparência da pele, aumentam os lábios, clareiam os olhos e afinam o nariz. A pesquisadora Sandra Portella Montardo investigou essas alterações da imagem e chegou à conclusão de que se trata da beleza de uma mulher jovem e branca.
A pesquisadora de mídias digitais da Universidade Federal do Paraná, Jenifer Grieger, aponta que alguns filtros não funcionam em pele negra. E, quando funcionam, descaracterizam a etnia ao afinar o nariz ou clarear a pele. “Não existe moderação do que é colocado e perpetuado nos filtros, mas deveria”, diz.
QUESTÃO DE NEGÓCIOS
Os efeitos são uma linha de negócios. Meta, TikTok e Snapchat transformaram suas áreas de efeitos em realidade aumentada (RA) em ferramentas próprias, voltadas para o público e também para as marcas. Eles são uma parte do arsenal de produtos que as big techs oferecem para aumentar o engajamento e o alcance dos conteúdos.
O filtro BoldGlamour, do TikTok, por exemplo, já foi utilizado em 119,5 milhões de vídeos, embora tenha sido lançado apenas no começo do ano. O MetaSpark AR, estúdio de efeitos em realidade aumentada da Meta, já chegou a 750 milhões de usuários mensais.
A Effect House do TikTok, estúdio que apoia a criação de efeitos em RA, foi lançada em abril do ano passado e já é responsável por gerar coletivamente 8,6 trilhões de vídeos. Além de chamar atenção de marcas, o aplicativo paga aos usuários que criam filtros populares. Recentemente, a rede criou um fundo de US$ 6 milhões para monetizar criadores de filtros. Serão pagos US$ 700 para efeitos que tenham sido usados em mais de 500 mil vídeos únicos nos trimestre.
Até fora das big techs os efeitos são lucrativos. O aplicativo Face App, que ficou popular por conta do seu filtro que mostra o rosto mais velho ou mais novo, gerou US$ 80 milhões em receita no ano passado, quando chegou a 33 milhões de usuários ativos.
Em alguns casos, como nos efeitos de câmeras de celular, a pessoa nem sabe que o rosto está passando por modificações sutis.
Os efeitos de RA também são usados para divulgar influenciadores. Jenifer lembra de como as irmãs Kardashian compartilhavam filtros moldados a partir das suas características físicas. Segundo a pesquisadora da UFPR, este é um tipo de influência mais danosa para a autoimagem, já que o produto vendido é a própria distorção do rosto.
Isso pode ser prejudicial para a audiência, principalmente entre adolescentes. Meninas e jovens mulheres são o grupo mais vulnerável aos efeitos negativos dos filtros. Segundo pesquisa feita pelo Instituto Dove, as redes sociais estão afetando a saúde mental de um em cada dois adolescentes.
De acordo com 69% dos profissionais especializados consultados, o conteúdo que mostra corpos “sem defeitos” e irreais tem consequências físicas mais graves para jovens e adolescentes, como distúrbios alimentares e autoflagelação.
“A nossa beleza, hoje, é uma dimensão de vulnerabilidade digital”, alerta Jenifer.