Disney e OpenAI, uma parceria improvável que desafia a lógica
Acordo entre Disney e OpenAI expõe tensões entre criatividade, IA generativa e proteção da propriedade intelectual

Walt Disney e OpenAI formam uma dupla de parceiros bastante improvável. A primeira é uma das marcas mais reconhecidas entre crianças e adolescentes com menos de 18 anos.
O valor de mercado da empresa, cerca de US$ 200 bilhões, foi construído ao longo de mais de um século de defesa agressiva de sua propriedade intelectual e da preservação da magia para públicos jovens e inocentes.
A OpenAI, que comemorou na semana passada seu 10º aniversário, é mais conhecida por virar de cabeça para baixo a criatividade, a economia e a sociedade com seu principal produto, o ChatGPT. Nos últimos dois meses, a empresa declarou que quer chegar a um ponto em que usuários adultos possam usar sua tecnologia para criar conteúdo erótico.
Diante disso, o que exatamente devemos pensar de um acordo recém-anunciado entre as duas empresas que vai permitir a usuários do ChatGPT e do Sora criar imagens e vídeos com mais de 200 personagens – de Mickey e Minnie Mouse ao Mandaloriano – a partir do início de 2026?
Como parte do acordo de três anos, a OpenAI se comprometeu a continuar implementando medidas robustas de confiança e segurança, além de controles para impedir conteúdo ilegal ou prejudicial.
A Disney espera que isso signifique que não será possível criar imagens obscenas da Bela e a Fera. Mas, dada a fragilidade das salvaguardas de modelos de IA e a facilidade com que podem ser burladas, não há garantias.
É isso que torna o acordo tão intrigante para a Disney, um gigante visto pelo público como "bonzinho", que há muito tempo age como um cão de guarda na defesa contra o uso não autorizado de sua propriedade intelectual.
“Alguns fãs da Disney e criadores de conteúdo certamente vão comemorar a notícia e a oportunidade de brincar no ‘parquinho’ da empresa de forma mais oficial”, afirma Rebecca Williams, pesquisadora que estuda a Disney e seus negócios na Universidade do Sul de Gales. “Mas há questões claras relacionadas a direitos autorais.”
Entre elas está o grau de influência que a Disney – conhecida por controlador com mão de ferro a forma como seus personagens são retratados – terá sobre as criações dos 800 milhões de usuários do ChatGPT.
Embora o acordo supostamente preveja a criação de um comitê conjunto de governança para definir o uso da propriedade intelectual, trata-se de uma empresa que já processou fornecedores de personagens fantasiados para festas infantis por uso não autorizado de seus ativos.
“A Disney é famosa por defender sua propriedade intelectual de forma extremamente agressiva”, diz Carissa Véliz, especialista em ética da IA na Universidade de Oxford. “Já a OpenAI simplesmente joga isso pela janela.”
CONTROLE DOS PERSONAGENS
Há ainda uma mudança considerável na forma como a Disney está cedendo controle sobre a representação de seus personagens, especialmente à luz da declaração feita por Sam Altman no ano passado de que deseja permitir que usuários adultos verificados participem de interações eróticas e, em escala mais ampla, quer relaxar as restrições impostas às ferramentas da empresa.
“O comunicado da Disney enquadra isso muito como uma forma de dar controle aos fãs, oferecendo mais criatividade e maiores oportunidades de conexão com personagens e histórias da Disney”, afirma Williams. “Ainda não está claro se é isso que os fãs realmente querem.”
O acordo exige também uma adaptação por parte da OpenAI. Presumivelmente, a estratégia de afrouxar controles em seus aplicativos e serviços – tornando-os mais permissivos quanto ao que usuários podem dizer, fazer e criar – terá de ser bem mais rígida quando se tratar de propriedades da Disney.
Além de permitir que fãs criem suas próprias versões em IA de personagens favoritos, a Casa do Mickey também está mergulhando de cabeça no universo da inteligência artificial: como parte do acordo, a Disney está investindo US$ 1 bilhão em participação acionária na OpenAI e, segundo relatos, se tornará um “grande cliente” da empresa.
UMA NOVA ERA PARA OS DIREITOS AUTORAIS
O acordo também altera a abordagem das duas empresas em relação aos direitos autorais. Toda a conversa entre Bob Iger e Sam Altman sobre redefinir o futuro do storytelling é puro exagero, avalia Adam Eisgrau, diretor de políticas de IA, criatividade e copyright da Câmara do Progresso, um grupo de defesa da indústria de tecnologia.
“A principal história hoje é o que eles aparentemente também concordaram nas entrelinhas”, afirma. Isso inclui a ideia de que “não há futuro para empresas de conteúdo que combatem o uso justo ao processar desenvolvedores de IA generativa por violação direta de direitos autorais relacionada aos dados de treinamento”, além do interesse dessas empresas de IA em fechar mais acordos “para evitar disputas legais sobre responsabilidade secundária pelos conteúdos gerados”.
Mas, acima de tudo, o acordo pode transformar a própria ideia do que sempre definiu a Disney, avalia Véliz. “Como isso vai afetar a criatividade no longo prazo?”, questiona. “A razão de ser da propriedade intelectual é incentivar a criatividade. Quando a enfraquecemos, damos menos motivos para que gente talentosa se dedique a criar”, explica.
“É muito irônico que uma empresa como a Disney, conhecida por valorizar o talento, a criatividade e o trabalho artesanal, esteja fechando um acordo com uma empresa que, no fim das contas, representa o oposto disso.”