E se pudéssemos conversar com a história?
Conversar com IAs treinadas com dados de grandes nomes pode ser uma das formas mais ricas de aproximar pessoas da história
Nas últimas semanas, fizemos algo que ainda soa estranho até de dizer em voz alta: colocamos dois avatares artificiais para conversar com o público. Um do jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura em 1975. Outro do arquiteto Fábio Penteado, morto em 2011.
Não eram deepfakes, nem personagens inventados. Eram avatares conversacionais construídos exclusivamente a partir de documentos, depoimentos, entrevistas e arquivos históricos – tudo rastreável, público, auditável.
Ainda é uma tecnologia nascente. Ainda causa estranhamento. Mas o caminho está aberto.
Ficou claro que a tecnologia funciona. Está ficando acessível. E, inevitavelmente vai se espalhar para escolas, museus, centros culturais, marcas e campanhas. A pergunta, portanto, deixou de ser “é possível?”. Agora precisamos perguntar “em que condições vale a pena?”
Não é sobre “falar com mortos”, mas algo mais profundo e interessante: conversar com biografias.
Aqui entra o potencial educativo. A educação brasileira sofre com um problema que nenhum aplicativo ou mudança curricular resolveu até agora: alunos de costas para a história, incapazes de relacionar passado e presente.
Um avatar conversacional, usado com rigor e contexto, pode funcionar como porta de entrada para arquivos hoje fechados em institutos, universidades e memórias familiares.
Não se deve naturalizar essa tecnologia sem debate.
Em vez de decorar datas, estudantes podem perguntar “por que você fez isso?”, “como era viver naquela época?”, “o que você achava que ia acontecer?”. Isso pode transformar documentos históricos áridos e quase impenetráveis em diálogo.
O mesmo vale para museus, especialmente os que lidam com acervos pouco conhecidos. Um visitante pode explorar uma biografia como quem percorre um mapa: escolhendo o caminho, aprofundando temas, voltando atrás, pulando etapas.
A tecnologia não substitui a mediação humana, mas pode multiplicar o alcance de narrativas hoje restritas a gavetas, caixas, disquetes e bibliotecas especializadas.

Mas a mesma tecnologia que permite isso também permite seu oposto: celebridades mortas ao volante de carros que nunca dirigiram; médicos respeitados divulgando suplementos alimentares duvidosos; figuras públicas defendendo ideias que nunca tiveram; campanhas políticas colocando palavras convincentes na boca de pessoas que não estão mais aqui para corrigir ou desmentir. Falsidades, em resumo.
Por isso, o alerta é necessário – sem pânico tecnológico, sem moralismo. Só responsabilidade.
Ao apresentarmos o avatar de Herzog no SESC, Fernando Morais travou por alguns minutos, antes de retomar o controle. Ficou sem palavras o escritor, sem perguntas o repórter veterano, calejado. Não por confusão, mas por conta de uma espécie de choque afetivo.
Quando o avatar respondeu, a voz era convincente o suficiente para alguém que conheceu o original sentir um impacto real. E isso nos diz algo: a forma continua carregando poder, mesmo quando o conteúdo é mediado.

No segundo evento, com o avatar de Penteado, aconteceram falhas que todo mundo deveria ver antes de se empolgar demais. Uma dedicatória em uma tese incluída na base de conhecimento levou o sistema a concluir que Penteado era casado com “Gabriele” – que, na verdade, era a esposa do autor da tese. A ausência de dados sobre seus irmãos fez com que ele dissesse não saber o nome deles.
Esses erros, rapidamente identificados e corrigidos, não são detalhes técnicos. São o DNA dessa tecnologia onde modelos de linguagem não lembram, inferem. E inferências, por melhores que sejam, podem tropeçar. Por isso insistimos em uma distinção fundamental: não estamos “trazendo pessoas de volta”; estamos criando formas novas de acessar conhecimento.
Aqui entra o papel pioneiro – e a responsabilidade – do que estamos fazendo. Não se deve naturalizar essa tecnologia sem debate. Não queremos impulsionar uma corrida de “avatares de celebridades”. Não estamos vendendo ressurreições de luxo.
Estamos, sim, testando, um formato novo de transmissão de memória, com rigor documental e com limites explícitos entre o que é fato e o que é reconstrução.
Essa tecnologia pode transformar documentos históricos áridos e quase impenetráveis em diálogo.
Acreditamos que, em pouco tempo, conversar com biografias será uma prática comum. E é justamente porque a tecnologia ainda é incipiente – e, por isso mesmo, maleável – que o debate precisa vir agora. Antes da normalização. Antes da apropriação comercial pura. Antes de a cultura parar de estranhar o que hoje ainda causa espanto.
Se fizermos isso cedo, podemos definir salvaguardas simples: consentimento claro, rastreabilidade rigorosa, transparência sobre o que é fato e o que é reconstrução.
Conversar com biografias pode ser uma das formas mais ricas de aproximar pessoas da história. Mas só vale a pena se soubermos separar conhecimento de fantasia, memória de projeção e educação de espetáculo.
O futuro dessa tecnologia não está determinado, mas está começando. E, como sempre, a forma como decidirmos usá-la vai dizer muito sobre quem somos.