Em breve, qualquer um com dados suficientes será capaz de criar um gêmeo digital

A ética – e o absurdo – de criar cópias digitais

mulher cria cópias digitais de si mesma
Créditos: Jade Thai Catwalk/ Getty Images/ Alexander Tsang/ Unsplash

Enrique Dans 3 minutos de leitura

Depois de escrever mais de um artigo por dia nos últimos 23 anos, já produzi textos o suficiente para treinar um modelo de IA capaz de escrever “como eu” de forma bastante convincente.

Com a tecnologia atual, não seria difícil criar um sistema que gerasse opiniões parecidas com as minhas – um autor algorítmico publicando sem parar, até mesmo depois da minha morte.

Ao que tudo indica, essa é a nova fronteira da produtividade: o gêmeo digital. Estamos entrando em uma era na qual profissionais não vão apenas automatizar tarefas, mas também replicar suas próprias personalidades.

Uma empresa pode criar uma versão digital do seu melhor vendedor ou atendente. Um CEO pode treinar um clone virtual para responder mensagens no seu lugar. Uma universidade pode disponibilizar uma versão em IA de um professor popular para dar aulas.

Na teoria, tudo isso parece incrível. Na prática, porém, gera um tipo estranho de confusão existencial: se a cópia for convincente o bastante, o que acontece com a pessoa real? O que significa “ser produtivo” quando é sua versão digital que está fazendo o trabalho?

O fascínio pela ideia de criar clones digitais segue a mesma lógica que sempre impulsionou a automação: terceirizar não só o esforço, mas também parte da identidade. A diferença é que agora a IA consegue replicar também a voz dessa identidade – tanto no sentido literal quanto no simbólico.

DA PRODUTIVIDADE À PRESENÇA

Executivos, empreendedores e criadores deveriam olhar com mais atenção para esse movimento. Um gêmeo digital pode responder e-mails e gravar vídeos, mas também enfraquece aquilo que dá sentido à liderança e à criatividade: a presença.

Em uma reportagem da “Axios” sobre clones de CEOs, muitos executivos admitiram gostar de suas versões digitais, mas não confiam totalmente nelas. O clone dá conta das tarefas repetitivas, mas não da empatia, do timing ou das nuances – elementos que constroem credibilidade.

E ainda há o dilema do que acontece quando o seu gêmeo digital continua existindo depois que você se vai. Algumas empresas já tratam dados de funcionários como patrimônio. Por que seria diferente com clones digitais?

Quando deixamos que a máquina pense por nós, perdemos o processo de reflexão e revisão que nos torna humanos.

Imagine uma organização que continua usando a “versão em IA” de um líder ou professor carismático depois de sua morte. Pode parecer uma homenagem, mas, no fundo, é uma espécie de “necromancia corporativa”: usar os restos intelectuais de alguém para manter uma marca viva.

Não é difícil imaginar universidades oferecendo “professores virtuais” ou empresas mantendo antigos CEOs como avatares permanentes. Em um estudo recente sobre gêmeos digitais, pesquisadores alertam que a linha entre “representação” e “posse” está ficando cada vez mais tênue. Quem é o dono do clone? Quem lucra com ele?

Quando reduzimos pessoas a dados, corremos o risco de transformar a identidade em produto – algo que pode ser licenciado, explorado ou remodelado conforme a conveniência.

O USO CERTO DA IA PARA AMPLIAR O ALCANCE PESSOAL

Existe, porém, um jeito sensato de usar a inteligência artificial para ganhar escala: como apoio, não como substituição.

Uso IA diariamente como parceira de reflexão. Ela lê meus rascunhos, sugere caminhos, indica fontes, questiona meus argumentos. Funciona como um assistente de pesquisa incansável. Mas o pensamento, a escolha das palavras e o sentido final continuam sendo meus.

Essa é a diferença entre usar a inteligência artificial e "virar" a inteligência artificial. Quando deixamos que a máquina pense por nós, perdemos o processo de reflexão e revisão que nos torna humanos.

mãos robóticas representando gêmeos digitais

Profissionais que usarem IA com responsabilidade vão conseguir ampliar o próprio alcance sem perder sua essência. Quem não fizer isso corre o risco de ver sua voz se confundir com a da máquina.

Em breve, qualquer pessoa com dados suficientes poderá criar uma versão digital de si mesma. Para alguns, isso será uma forma de imortalidade; para outros, um sinal de irrelevância. Para mim, é um espelho, um teste do que realmente importa no trabalho humano.

Quando o meu gêmeo digital conseguir escrever um bom artigo sobre IA, não vou me impressionar. A questão não é se ele escreve bem. É se ele se importa – e se me ajuda no objetivo que estou tentando alcançar.

Até que os algoritmos consigam se importar com verdade, nuance, curiosidade e propósito, continuarei fazendo o que faço há 23 anos: sentar, pensar e escrever. Não porque preciso, mas porque ainda posso.


SOBRE O AUTOR

Enrique Dans leciona inovação na IE Business School desde 1990, hackeando a educação como consultor sênior de transformação digital na... saiba mais