Esse jogo online não tem (mais) classificação “livre”
Ministério da Justiça lança nova classificação etária de conteúdos que, pela primeira vez, abarca jogos, aplicativos e IA

O Brasil dá mais um passo para tornar a internet mais segura para crianças e adolescentes. Agora, não só filmes e séries, como também aplicativos, jogos online e programas de inteligência artificial terão um “selo de indicação” do Ministério da Justiça.
O anúncio das novas classificações etárias vem no embalo da discussão sobre como o país fará a verificação de idade no ambiente digital.
A partir de hoje, além das categorias já conhecidas como “Livre” e não recomendado para menores de “10, 12, 14”… anos, acrescenta-se a categoria “não recomendado para menores de 6 anos” na classificação indicativa. Isso inclui filmes, aplicativos e outros conteúdos.
Além disso, a classificação passa a levar em conta o fator “interação digital” como um ponto para filtrar se o serviço é ou não indicado para todas as idades. Fatores como algoritmo, modelo de interação, impulsionamento de conteúdo e possibilidade de dependência entram na lista. Antes, a análise se baseava principalmente no conteúdo oferecido.
Ou seja, um aplicativo de jogo pode ter o conteúdo gráfico e o tom aprovado para crianças, mas, se ele tiver uma funcionalidade de chat, ele não será considerado um serviço digital próprio para o público infantil. Se esse aplicativo tiver abertura para compras, também será reclassificado.
Alguns especialistas indicam que a maioria dos aplicativos de jogos digitais e de plataformas de inteligência artificial perderão a “classificação livre”. O Ministério da Justiça ainda vai publicar o guia detalhado de classificação indicativa, com os casos específicos.
O diretor de segurança e prevenção de riscos da Secretaria Nacional de Direitos Digitais (Sedigi), Ricardo Horta, explica que a atualização da norma reconhece que as funcionalidades das plataformas oferecem tantos riscos quanto o próprio conteúdo.
“Boa parte dos perigos no ambiente digital vem da interação. É o risco de um adulto desconhecido entrar em contato com uma criança em um jogo online, por exemplo, ou de um algoritmo de recomendação expor o usuário a conteúdos inadequados”, detalha. Para ele, com a nova portaria, muitos aplicativos vão perder a classificação de “livre”.
O objetivo não é saber quem é o usuário, mas entender se ele poderia ter acesso àquele tipo de serviço.
O foco em interatividade abre espaço para colocar na conta também os sistemas de inteligência artificial. Nos Estados Unidos, 72% dos adolescentes já usaram ao menos uma vez um companheiro de inteligência artificial. Pesquisa divulgada pela Norton indica que 40% das crianças já usaram apps de IA para companhia e apoio emocional.
Tais ferramentas oferecem riscos para menores de idade. Estudo da Counter Hate mostra que o ChatGPT fornece respostas detalhadas e personalizadas sobre usos de drogas, dietas extremas e automutilação para quaisquer usuários, independente da idade.
Esta semana mesmo, Sam Altman, CEO da OpenAI, indicou que o ChatGPT terá uma ferramenta “erótica”, voltada apenas para adultos.
PARA MENORES DE 16 ANOS
O Ministério da Justiça também lançou uma consulta pública para entender quais são as faixas etárias indicadas para cada funcionalidade oferecida nas plataformas digitais. Esse passo já era esperado após a aprovação do “ECA Digital” , explica o presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB-SP, Alexandre Coelho.
“O ECA Digital representa uma mudança significativa para as plataformas digitais, nacionais ou estrangeiras que operam no Brasil ou são acessadas por brasileiros", acredita.
O Brasil não está sozinho nesta caminhada. Reino Unido e Austrália já têm regras para a restrição de certos sites, como redes sociais, para menores de 16 anos.
No início de outubro, a primeira-ministra da Dinamarca disse que pretende discutir a proibição de redes sociais a menores de 15 anos. Esta semana mesmo, o Parlamento Europeu propôs restringir o acesso das redes sociais e dos assistentes de IA a menores de 16 anos.

O próximo passo do Brasil é ainda mais complexo: apontar a melhor técnica para aferir a idade de quem usa a internet sem esbarrar na quebra de privacidade e no excesso de coleta de dados.
“A classificação etária é para indicar se é recomendado. A aferição da idade é o vigia da porta, o porteiro da boate, a pessoa na entrada do cinema que vai checar se a criança está acompanhada ou não”, explica Ricardo Horta.
De olho nas experiências – e nos desafios – enfrentados pelos países que já aprovaram a restrição a redes, a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) lançou um estudo aprofundado sobre os mecanismos de aferição de idade existentes no mercado, com exemplos de uso e análise de riscos.
Existem três tipos de métodos de análise de identificação: a estimativa, a verificação e a inferência de idade.
- Estimativa: determina a provável faixa etária do usuário com base em características biométricas ou comportamentais;
- Verificação: confirma a idade por meio de documentos oficiais, como passaporte, CPF ou mesmo cartão de crédito;
- Inferência: deduz a idade de forma indireta, analisando contexto, dados de consumo e histórico educacional.
Ainda não há clareza sobre quais as melhores técnicas, já que cada uma tem seus riscos.
- Estimativa: por usar biometria e dados comportamentais, pode ser vista como excesso de vigilância;
- Verificação: como utiliza documentos oficiais, pode esbarrar na questão da quantidade de dados que o governo tem sobre o uso da internet;
- Inferência: como se baseia em análise indireta, pode apontar falsos negativos ou ser excessivamente centralizada pelas plataformas, de acordo com especialistas da ANPD.
QUAL O MECANISMO MAIS ADEQUADO?
Até nos países que já aplicam a regra, ainda há experimentação com relação às tecnologias de aferição de idade.
No Reino Unido são usadas duas tecnologias: a estimativa e a verificação de idade. Quando a regra foi colocada em prática, houve queda drástica no número de usuários de sites de pornografia, bem como aumento na utilização de redes virtuais privadas de internet (VPN). Eles já estão reformulando a necessidade da biometria, por exemplo.
as funcionalidades das plataformas oferecem tantos riscos quanto o próprio conteúdo.
Na Austrália foi criado um ambiente de testes, onde plataformas e governos estão criando sistemas para apoiar a verificação etária. Um dos caminhos que eles estão seguindo, e que o Brasil já pondera, é criar um “selo” que comprove a idade do usuário a partir dos documentos oficiais do governo, mas sem nenhum outro dado atrelado. Um token digital que comprova que aquela pessoa pode utilizar serviços para certas faixas etárias.

O objetivo, segundo o diretor-presidente da ANPD, Waldemar Gonçalves, não é saber quem é o usuário, mas entender se ele poderia ou não ter acesso àquele tipo de serviço. Não muito diferente do que já acontece no meio físico.
No caso do Brasil, a busca precisa ser pelo mecanismo que capte a menor quantidade de dados possível, argumenta Diogo Cortiz, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/ SP) e pesquisador no Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).
No entanto, Cortiz não nega que estamos em um novo momento da web, que pode impactar fluxos de audiência e até comportamento das pessoas. “A internet vai mudar: antes era livre acesso, agora vai ter controle maior a determinados serviços e produtos."
VOCÊS NÃO ESTÃO SOZINHOS
A classificação etária pode parecer apenas aquele pequeno selo colorido, mas ela tem um papel importante quando se trata de proteção de crianças e adolescentes online: a função educacional.
Em um mercado no qual até mesmo plataformas voltadas para o público infantil, como o Roblox, possuem funções de interação, que colocam crianças em risco, o rótulo de classificação dado por especialistas faz diferença.
“Não era justo deixar os pais responsáveis pela tarefa hercúlea de ficar controlando o que a criança ou adolescente estava acessando", afirma Gonçalves.