Esse robô é humano? E esse humano é robô?
Na China, a robótica avançada e as redes sociais com IA já criam um cenário onde as linhas entre humano e humanoide estão começando a se confundir

Na China, o avanço da robótica já traz para a realidade um cenário digno de "Blade Runner". Ou talvez uma nova localização do “vale da estranheza”. Um mundo onde o robô humanoide precisa ser despedaçado para provar que não é uma pessoa fantasiada, e onde uma mulher, fantasiada de androide, precisa gargalhar para provar que não é um robô.
Ao apresentar o modelo humanoide Iron, a companhia XPeng trouxe estranhamento para o público na semana passada. Com o andar cadenciado e o corpo preenchido por músculos de silicone, o Iron foi tão realista que a plateia acreditou se tratar de uma modelo vestida de robô.
O CEO da rival chinesa da Tesla, He Xiaopeng, teve que cortar os tecidos que revestiam a perna e as costas do droide, mostrando que, ali, estava uma máquina.
Já a modelo e influenciadora 大佬甜Giovanna (traduzido livremente como: Mestre Cosplay, Doce Giovanna) passou dos 5,5 milhões de seguidores no Doyuin (versão chinesa do TikTok) ao se vestir e se movimentar como um robô.
Segundo a mídia chinesa, a criadora de conteúdo já gastou um milhão de yuans (o equivalente a R$ 760 mil) em cirurgias para se tornar cada vez mais parecida com um androide.
Nos últimos três meses, ela se tornou uma das 10 influenciadoras com a audiência em alta no segmento disputado de beleza. Um feito e tanto no principal segmento de um mercado no qual os criadores têm até uma outra denominação: Key Opinion Leaders. Alguns dos vídeos de Giovanna já receberam, erroneamente, o rótulo de conteúdo gerado por inteligência artificial.
Além de ser chamada para participar de feiras de inovação e de robótica, Giovanna, com seu seu quase 1,80m de altura, anda pelas ruas de Pequim confundindo pessoas. Alguns pedem para tocar no rosto da influenciadora para entender a realidade, outros tiram fotos, fazem vídeos, acreditando se tratar do mais novo hardware humanoide.
Já a audiência chega aos detalhes para ditar que Giovanna não é uma androide, e sim uma mulher real. Um usuário diz que usou uma lupa para ver a articulação da parte inferior da perna e do tornozelo “desalinhados". Outro captou que Giovanna não era um robô a partir de um movimento a mais dos olhos.
Um vídeo no qual a influenciadora anda pelo vilarejo da família viralizou na China. Nele, Giovanna dá um sinal de que é humana: a gargalhada ao lado de idosas da vila.

É quase como um teste de Turing, aquele que detecta se um chatbot tem ou não linguagem robotizada, só que ao contrário. É o humano tendo que provar que não é uma máquina.
NOVOS CÓDIGOS SOCIAIS
Nas telas das redes sociais, outro fenômeno ganha audiência no Douyin: conteúdo humano que imita slops de inteligência artificial.
A hashtag #HumanimitationAIContest (em chinês #人类模仿ai大赛#), ou “competição para imitar IA” chegou a mais de 27 milhões de visualizações no aplicativo de microvídeos. São versões bem-humoradas de vídeos que recriam deepfakes e pessoas geradas por IA.
No mundo da robótica, há um termo para explicar a sensação de desconforto quando um robô se parece demais com humano, mas não o suficiente. É o chamado vale da estranheza. Ele cria uma relação ambígua de não se conectar tanto quando uma máquina fica mais parecida com uma pessoa.
Para quem acaba de voltar da China, a sensação é que o vale da estranheza está ficando cada vez mais… comum. Pequenos robôs já fazem parte do dia a dia das cidades, como o atendente do hotel, o garçom ou o guarda de trânsito.
“A China está normalizando a convivência com robôs a uma velocidade que poucos mercados acompanham", explica Camilo Barros, co-fundador do Institute for Tomorrow. Barros participou de uma imersão no mercado de inovação chinês no último mês.

Na visão da futurista e colunista da Fast Company Brasil, Daniela Klaiman, que também esteve no país por três meses este ano, a China está trabalhando para “acostumar as pessoas” com os robôs, o que cria novos códigos sociais.
“A China está puxando esse movimento, tentando trazer esses robôs para o dia a dia. Enquanto isso, também estão trabalhando para que as pessoas se acostumem com eles, criando novos códigos sociais e regras para que robôs e humanos possam coexistir”.
O que já está acontecendo com os chat-bots de Inteligência Artificial (IA) generativa serve como um aviso: o ser humano consegue se conectar com seres artificiais que emulam sentimentos e lógica. Há casos de pessoas que se apaixonam e trocam mensagens íntimas com chatbots. O que pode acontecer no caso dos robôs demasiadamente humanos?
A TOMADA DOS ROBÔS HUMANOIDES
De acordo com a Federação Internacional de Robótica (IFR), as fábricas chinesas instalaram 300 mil novos robôs em 2025, o equivalente a 54% do mercado global desse segmento. O país agora segue para a nova fase: os robôs “sociais”, capazes de desempenhar funções de cuidado de pessoas e de contato.
a China está trabalhando para acostumar as pessoas com os robôs.
O design humanoide faz diferença para essa nova era. Bípedes, com braços biônicos, quadris articulados e, em alguns casos, até coluna vertebral sintética, os robôs humanoides tem altura e formato de pessoas. Se movimentam como um humano – com a força de aço e titânio. Segundo Daniela, eles tendem a aparecer cada vez mais em setores como varejo, saúde e educação.
Segundo dados da CCTV Finance, 10 mil unidades de humanóides devem ser vendidas na China em 2025. O Goldman Sachs projeta que o país será o primeiro mercado a massificar a venda desses androides, que pode chegar a 1,38 milhões de unidades até 2035.
UM ROBÔ CAÍDO NO TEMPO E ESPAÇO
Em meio a vídeos viralizados de robô, um outro chama atenção. A Rússia apresentou seu primeiro robô humanoide no meio de novembro. O modelo Aldol deu dois passos desequilibrados no palco e caiu de cara no chão.
A cena foi compartilhada com humor e levou muitos a rir.Mas talvez seja um símbolo para a realidade do software dos robôs humanoides.
Embora o hardware desses seres tecnológicos tenha evoluído a ponto das articulações serem completamente iguais às de humanos, o software do robô ainda está engatinhando.
Russia unveiled its new humanoid robot, AIdol, in Moscow and it immediately collapsed pic.twitter.com/4ymFUaiYEg
— Saint Javelin (@saintjavelin) November 12, 2025
“Estamos na primeira infância da robótica; eles estão aprendendo a falar e repetir ações humanas. Mas ainda vai demorar um pouco para a autonomia de ações e pensamento”, explica o engenheiro de software da Robotec Solutions, Matheus Dias Ferlin Moura.
Os robôs são programados para repetir uma função e atuar em um espaço específico. Eles dançam, lutam e fazem um bom cat-walk, mas não são capazes de aprender novos movimentos e nem responder ao inesperado. Falta a eles a IA-física.
A Robotec é uma empresa brasileira que distribui robôs das gigantes chinesas Temu e Unitree e que trouxe para o país o primeiro humanoide: o G1, apelidado carinhosamente de Zeca Byte. Moura explica que muitos conectam erroneamente a evolução rápida das IAs de texto e a capacidade de hardware a uma “revolução robótica humanoide”.

O “deep learning” de um algoritmo para um robô precisa de mais do que texto, imagem e vídeo: ele precisa entender de espaço e tempo. O androide precisa entender de processos de deslocamento e também de capacidade física – a própria capacidade e a dos objetos.
Andar em duas pernas, usar ferramentas, se deslocar pelas rua, até mesmo pegar uma caneca, são ações que o ser humano aprendeu a partir do erro. E também a partir de exemplo de outros.
Quando se entra na parte de relações interpessoais, existe também o ato de olhar no olho, de demonstrar sentimentos com o rosto e dar respostas não verbais ao que o outro humano está falando. Um robô não é capaz disso. Para Moura, talvez nunca seja.
“Isso é bom. Um bom robô é aquele que o humano consegue saber que não é uma pessoa. Talvez a gente não precise de robôs que replicam as limitações físicas humanas", aponta.
Moura e Diego Badra, diretor de expansão da Robotec, explicam que há muito mais espaço de aplicação prática para robôs quadrúpedes e que tem funções específicas, como o modelo Go2, que já é usado para rastrear áreas profundas de florestas e cachoeiras.
Por enquanto, deixemos para os humanos a capacidade de imitar robôs.