Esse robô é humano? E esse humano é robô?

Na China, a robótica avançada e as redes sociais com IA já criam um cenário onde as linhas entre humano e humanoide estão começando a se confundir

dois robôs com feições e corpo feminino
Crédito: Ignatiev ezayatssv/ Getty Images

Camila de Lira 7 minutos de leitura

Na China, o avanço da robótica já traz para a realidade um cenário digno de "Blade Runner". Ou talvez uma nova localização do “vale da estranheza”. Um mundo onde o robô humanoide precisa ser despedaçado para provar que não é uma pessoa fantasiada, e onde uma mulher, fantasiada de androide, precisa gargalhar para provar que não é um robô.

Ao apresentar o modelo humanoide Iron, a companhia XPeng trouxe estranhamento para o público na semana passada. Com o andar cadenciado e o corpo preenchido por músculos de silicone, o Iron foi tão realista que a plateia acreditou se tratar de uma modelo vestida de robô.

O CEO da rival chinesa da Tesla, He Xiaopeng, teve que cortar os tecidos que revestiam a perna e as costas do droide, mostrando que, ali, estava uma máquina.

Já a modelo e influenciadora  大佬甜Giovanna (traduzido livremente como: Mestre Cosplay, Doce Giovanna) passou dos 5,5 milhões de seguidores no Doyuin (versão chinesa do TikTok) ao se vestir e se movimentar como um robô.

Segundo a mídia chinesa, a criadora de conteúdo já gastou um milhão de yuans (o equivalente a R$ 760 mil) em cirurgias para se tornar cada vez mais parecida com um androide.

Nos últimos três meses, ela se tornou uma das 10 influenciadoras com a audiência em alta no segmento disputado de beleza. Um feito e tanto no principal segmento de um mercado no qual os criadores têm até uma outra denominação: Key Opinion Leaders. Alguns dos vídeos de Giovanna já receberam, erroneamente, o rótulo de conteúdo gerado por inteligência artificial.

Além de ser chamada para participar de feiras de inovação e de robótica, Giovanna, com seu seu quase 1,80m de altura, anda pelas ruas de Pequim confundindo pessoas. Alguns pedem para tocar no rosto da influenciadora para entender a realidade, outros tiram fotos, fazem vídeos, acreditando se tratar do mais novo hardware humanoide.

Já a audiência chega aos detalhes para ditar que Giovanna não é uma androide, e sim uma mulher real. Um usuário diz que usou uma lupa para ver a articulação da parte inferior da perna e do tornozelo “desalinhados". Outro captou que Giovanna não era um robô a partir de um movimento a mais dos olhos.

Um vídeo no qual a influenciadora anda pelo vilarejo da família viralizou na China. Nele, Giovanna dá um sinal de que é humana: a gargalhada ao lado de idosas da vila. 

modelo robô chinesa Giovanna
Crédito: Reprodução/ TikTok

É quase como um teste de Turing, aquele que detecta se um chatbot tem ou não linguagem robotizada, só que ao contrário. É o humano tendo que provar que não é uma máquina.

NOVOS CÓDIGOS SOCIAIS

Nas telas das redes sociais, outro fenômeno ganha audiência no Douyin: conteúdo humano que imita slops de inteligência artificial.

A hashtag #HumanimitationAIContest (em chinês #人类模仿ai大赛#), ou “competição para imitar IA” chegou a mais de 27 milhões de visualizações no aplicativo de microvídeos. São versões bem-humoradas de vídeos que recriam deepfakes e pessoas geradas por IA.

No mundo da robótica, há um termo para explicar a sensação de desconforto quando um robô se parece demais com humano, mas não o suficiente. É o chamado vale da estranheza. Ele cria uma relação ambígua de não se conectar tanto quando uma máquina fica mais parecida com uma pessoa.

Para quem acaba de voltar da China, a sensação é que o vale da estranheza está ficando cada vez mais… comum. Pequenos robôs já fazem parte do dia a dia das cidades, como o atendente do hotel, o garçom ou o guarda de trânsito.

“A China está normalizando a convivência com robôs a uma velocidade que poucos mercados acompanham", explica Camilo Barros, co-fundador do Institute for Tomorrow. Barros participou de uma imersão no mercado de inovação chinês no último mês.

Créditos: dimdimich/ iStock

Na visão da futurista e colunista da Fast Company Brasil, Daniela Klaiman, que também esteve no país por três meses este ano, a China está trabalhando para “acostumar as pessoas” com os robôs, o que cria novos códigos sociais.

“A China está puxando esse movimento, tentando trazer esses robôs para o dia a dia. Enquanto isso, também estão trabalhando para que as pessoas se acostumem com eles, criando novos códigos sociais e regras para que robôs e humanos possam coexistir”.

O que já está acontecendo com os chat-bots de Inteligência Artificial (IA) generativa serve como um aviso: o ser humano consegue se conectar com seres artificiais que emulam sentimentos e lógica. Há casos de pessoas que se apaixonam e trocam mensagens íntimas com chatbots. O que pode acontecer no caso dos robôs demasiadamente humanos?

A TOMADA DOS ROBÔS HUMANOIDES

De acordo com a Federação Internacional de Robótica (IFR), as fábricas chinesas instalaram 300 mil novos robôs em 2025, o equivalente a 54% do mercado global desse segmento. O país agora segue para a nova fase: os robôs “sociais”, capazes de desempenhar funções de cuidado de pessoas e de contato.

a China está trabalhando para acostumar as pessoas com os robôs.

O design humanoide faz diferença para essa nova era. Bípedes, com braços biônicos, quadris articulados e, em alguns casos, até coluna vertebral sintética, os robôs humanoides tem altura e formato de pessoas. Se movimentam como um humano – com a força de aço e titânio. Segundo Daniela, eles tendem a aparecer cada vez mais em setores como varejo, saúde e educação.

Segundo dados da CCTV Finance, 10 mil unidades de humanóides devem ser vendidas na China em 2025.  O Goldman Sachs projeta que o país será o primeiro mercado a massificar a venda desses androides, que pode chegar a 1,38 milhões de unidades até 2035.

UM ROBÔ CAÍDO NO TEMPO E ESPAÇO

Em meio a vídeos viralizados de robô, um outro chama atenção. A Rússia apresentou seu primeiro robô humanoide no meio de novembro. O modelo Aldol deu dois passos desequilibrados no palco e caiu de cara no chão.

A cena foi compartilhada com humor e levou muitos a rir.Mas talvez seja um símbolo para a realidade do software dos robôs humanoides.

Embora o hardware desses seres tecnológicos tenha evoluído a ponto das articulações serem completamente iguais às de humanos, o software do robô ainda está engatinhando.

“Estamos na primeira infância da robótica; eles estão aprendendo a falar e repetir ações humanas. Mas ainda vai demorar um pouco para a autonomia de ações e pensamento”, explica o engenheiro de software da Robotec Solutions, Matheus Dias Ferlin Moura.

Os robôs são programados para repetir uma função e atuar em um espaço específico. Eles dançam, lutam e fazem um bom cat-walk, mas não são capazes de aprender novos movimentos e nem responder ao inesperado. Falta a eles a IA-física.

A Robotec é uma empresa brasileira que distribui robôs das gigantes chinesas Temu e Unitree e que trouxe para o país o primeiro humanoide: o G1, apelidado carinhosamente de Zeca Byte. Moura explica que muitos conectam erroneamente a evolução rápida das IAs de texto e a capacidade de hardware a uma “revolução robótica humanoide”.

robô humanoide Zeca Byte, da Robotec Solutions

O “deep learning” de um algoritmo para um robô precisa de mais do que texto, imagem e vídeo: ele precisa entender de espaço e tempo. O androide precisa entender de processos de deslocamento e também de capacidade física – a própria capacidade e a dos objetos.

Andar em duas pernas, usar ferramentas, se deslocar pelas rua, até mesmo pegar uma caneca, são ações que o ser humano aprendeu a partir do erro. E também a partir de exemplo de outros.

Quando se entra na parte de relações interpessoais, existe também o ato de olhar no olho, de demonstrar sentimentos com o rosto e dar respostas não verbais ao que o outro humano está falando. Um robô não é capaz disso. Para Moura, talvez nunca seja.

“Isso é bom. Um bom robô é aquele que o humano consegue saber que não é uma pessoa. Talvez a gente não precise de robôs que replicam as limitações físicas humanas", aponta.

Moura e Diego Badra, diretor de expansão da Robotec, explicam que há muito mais espaço de aplicação prática para robôs quadrúpedes e que tem funções específicas, como o modelo Go2, que já é usado para rastrear áreas profundas de florestas e cachoeiras.

Por enquanto, deixemos para os humanos a capacidade de imitar robôs.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais