Fandoms: de espaço marginal a vetor de transformação cultural e econômica

Estudo mostra que quase 40% dos brasileiros se dizem fãs, gastando, em média, R$ 200 mensais com o ídolo. Sua marca está atenta a esse movimento?

Crédito: Fast Company Brasil

Camila de Lira 8 minutos de leitura

A internet fez o fã-clube virar fandom. As redes sociais fizeram os fandoms virarem mainstream. Com a força para conversar com milhões, criar conteúdos, exigir produtos e pagar por experiências, o fandom virou protagonista do mercado criativo e da indústria pop. Mas, o que isso significa para a gente? 

"Os fandoms hoje não são só grupos de pessoas que amam algo; são vetores de transformações culturais, econômicas e até políticas. As marcas que reconhecem isso estão um passo à frente", explica André Alves, psicanalista e cofundador do instituto de estudos culturais e de pesquisa comportamental float. Alves é escritor e pesquisa o comportamento dos jovens no mundo digital.

Quase 40% dos brasileiros se dizem fãs de algo ou alguém. Segundo a pesquisa "A Era dos Fandoms", conduzida pela agência Monks e pela float, o brasileiro gasta R$ 200 mensais, em média, com seus ídolos – cinco vezes mais do que o valor gasto com atividades culturais. Mais da metade dos fãs dizem que, quando compram algo de seu ídolo, estão investindo em si mesmos.

O retorno disso vem em cifras milionárias. A Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens estima que o mercado de produtos licenciados movimenta R$ 21,5 bilhões no Brasil e US$ 300 bilhões no mundo. De acordo com a pesquisa, 30% dos brasileiros compram pelo menos uma edição limitada de produto ligado ao ídolo por ano.

O poder financeiro se desdobra no mundo. A turnê de Taylor Swift, The Eras Tour, que passou pelo Brasil em 2023, deve faturar mais de US$ 2,2 bilhões quando se encerrar, no final do ano. Economistas estimam que, só nos Estados Unidos, os fãs da artista gerem US$ 5 bilhões. 

Não é apenas Taylor Swift que tem um fandom energizado. Os grupos sul-coreanos de pop também arrastam multidões – online e off-line. Fãs que pagam assinaturas em aplicativos específicos, que vão em shows, consomem músicas. Só o BTS é responsável por movimentar 0,3% do produto interno bruto da Coreia do Sul. 

BEM-VINDOS À FAN-ECONOMY

Nas décadas de 1960 e 70, as fangirls (grupos de garotas fãs) eram frequentemente ridicularizadas, vistas como histéricas e obsessivas. Tanto que, até hoje, o termo fangirl é considerado pejorativo. Já nos anos 1980 e 90, foi a vez dos nerds ocuparem esse lugar de culto e dedicação intensa a séries, filmes e bandas.

Nesse momento, a indústria de filmes estava procurando novas fontes de receita e achou na venda de produtos licenciados um caminho para continuar faturando com o público por muito tempo depois das películas saírem do cinema. 

Nos anos 2000, com o surgimento da internet, os fãs ganharam o selo que precisavam: saem as cartinhas quilométricas e cartazes para os ídolos, entram as plataformas digitais com suas possibilidades infinitas.

São sites para histórias de fãs (os chamados fanfics), espaços para publicação de desenhos feitos por fãs (fanarts) ou ferramentas para edição rápida de vídeo (famcams). Antes mesmo da existência das redes sociais, os fandoms já eram criadores e distribuidores de conteúdo.

os fandoms brasileiros estão sedentos por experiências ao vivo: 62% gostariam de mais eventos presenciais voltados para fãs.

A linguagem do fandom entrou na cultura de vez com as redes: spoiler, shippar, lore, memes. O vocabulário da internet é o glossário do fandom. "Os fãs hoje se veem como co-criadores. Não estão mais apenas consumindo, estão criando também", afirma Fabiano Carvalho, diretor de pesquisa cultural e insights da Monks.

O principal site de fanfics, o Archive of our Own (AO3), por exemplo, tem 13 milhões de publicações. Mais da metade dos fãs brasileiros acreditam que o conteúdo criado por fãs é tão ou mais interessante quanto o conteúdo oficial. Já 53% dizem que eventos feitos pelo fandom agregam mais do que um "evento oficial".

Os produtos criados por fãs saem do nicho do fandom. O filme "Uma Ideia de Você", estrelado por Anne Hathaway e lançado este ano no festival South by Southwest, tem o roteiro baseado numa fanfic feita para o cantor Harry Styles.

A autora Ali Hazelwood, que explodiu no TikTok, já vendeu mais de um milhão de cópias de seus romances para o público jovem-adulto. Suas histórias ficaram famosas no AO3, como romances do universo alternativo de Star Wars.

Créditos: Taylor Hill/ TAS23/ Getty Images para TAS Rights Management

Ao criar experiências diferentes, os fãs mudaram a forma com que marcas lançam produtos. A Netflix, por exemplo, tem investido em experiências imersivas O Burger King transformou uma de suas lojas da avenida Paulista, em São Paulo, em um espaço para montar cenários de séries, jogos e filmes. Até o Airbnb entrou na onda e passou a ter uma área voltada para "casas temáticas". 

A criação não é apenas para o universo da ficção. Fãs de Taylor Swift, por exemplo, confeccionam e distribuem "pulseiras da amizade" durante os shows da The Eras Tour. Os adereços são feitos a mão e têm frases de músicas, palavras de incentivo ou a data do concerto.

No ano passado, quando a turnê passou pelo Brasil, houve aumento de 120% na venda de miçangas na Shopee e de 74% nas buscas por kits de pulseira no Mercado Livre. 

ESCUDO ANTI-PERRENGUE

A pesquisa com os fandoms brasileiros indicou que eles estão sedentos por experiências ao vivo: 62% gostariam de mais eventos presenciais voltados para fãs. Mas, calma, isso não significa que toda marca tem que trazer Madonna ou Taylor Swift para o Brasil. Ou produzir o filme da Barbie.

Não adianta, tampouco, vender produtos licenciados ou edições limitadas para atingir esse público. O consumo sem a experiência não traz contato com o fandom. Consegue, no máximo, irritar o público. "Fãs não são otários. Pelo contrário, eles têm um senso crítico muito grande porque dominam os universos dos quais a gente está falando", avisa Alves.

Para 61% dos brasileiros, as marcas não entregam um produto ou experiência boa para os fãs. Uma forma de estar juntos é entender que, para se considerar aficionado por algo, existem sacrifícios. 

Os "perrengues" fazem parte da vida do fandom. Seja ver um jogo debaixo de chuva torrencial ou passar horas em pé numa fila para conseguir o melhor lugar na frente do palco. Para o grupo de apaixonados por um artista, essa experiência serve para unir e criar conexões.

Crédito: Freepik (imagem gerada com IA)

Quantos torcedores lembram daquele jogo que o time quase ganhou? Quantos fãs de séries lembram das horas que esperaram para a transmissão do último episódio?

As marcas podem estar nesse ambiente e facilitar a vida do fã. Fabiano Carvalho lembra das ações da Domino`s durante a turnê da Taylor Swift no Brasil. Em coordenação com o grupo Update Swift Brasil, a marca distribuiu pizza e água para as pessoas que estavam esperando nas longas filas para entrar no estádio Allianz Parque para acompanhar a turnê.

Foi uma maneira de estar junto do fandom sem, de fato, precisar estampar nada com o nome da artista.  "As marcas podem entrar nesse jogo como agentes, ajudando os fãs a co-criar. Mas precisam entender que, sempre que entrarem em contato com um fandom, há sacrifícios a fazer", avisa André Alves.

Ao criar experiências diferentes, os fãs mudaram a forma com que marcas lançam produtos.

De acordo com pesquisa feita pela Amazon Ads, 62% dos fãs têm uma atitude positiva em relação às marcas que se envolveram com os fandoms por longos períodos de tempo. Mais da metade (55%) disseram que têm maior probabilidade de considerar uma marca que patrocina conteúdo relacionado ao fandom.

As perguntas que podem ajudar a nortear as estratégias são as que tentam entender os compromissos e os sacrifícios que os fãs exigem. Com escuta atenta e conectada às redes – e respostas ainda mais rápidas –, as marcas podem se inserir como habilitadoras entre fandom e ídolos.

GRANDES PODERES, GRANDES RESPONSABILIDADES

A economia fan-made tem uma energia criativa gigantesca, mas também tem um potencial destruidor. Os fandoms são exigentes e se sentem "donos" das histórias e das narrativas de seus ídolos. Quando os ídolos (ou as marcas) não correspondem, as críticas são severas.

Em outras palavras, para navegar nesse espaço cheio de energia, a marca deve seguir o conselho da Marvel: com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Os fãs querem ser servidos, mas tem exigências específicas sobre como "servir bem". "O fanservice surge como uma demanda, mas, ao mesmo tempo, o fã quer ser surpreendido", diz Alves.

Para 61% dos brasileiros, as marcas não entregam um produto ou experiência boa para os fãs.

Ele chama esse fenômeno de "paradoxo do fanservice". É um dilema enfrentado por marcas e criadores ao tentar agradar os fãs enquanto tentam inovar.  Por um lado, atender às expectativas pode fortalecer o vínculo emocional e garantir o sucesso comercial, pois os fãs se sentem valorizados e representados.

Por outro, ceder completamente ao desejo dos fãs pode limitar a criatividade e a capacidade de surpreender, tornando as histórias ou produtos previsíveis e enfraquecendo o impacto cultural.

"Até que ponto, por exemplo, os mais de 30 filmes do universo cinemático da Marvel existem para servir aos fãs ou para surpreender os fãs?", questiona Alves.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais