O hambúrguer feito de células geneticamente editadas está a caminho
SciFi Foods, está usando a tecnologia de edição de genes para reduzir o custo de produção de carne a partir de células
Digamos que você é o CEO de uma startup de tecnologia que promete criar a carne do futuro. Seus concorrentes mais competitivos estão trabalhando em meio a pilhas de placas de Petri – aqueles recipientes de vidro que os profissionais de laboratório utilizam para o crescimento de micro-organismos.
O objetivo deles é cultivar quantidades monumentais de células musculares animais: para fazer um mísero bife, são necessárias mais de 10 trilhões de células. Como CEO, o seu trabalho é convencer os investidores de que existe uma técnica para tornar essa missão viável – e de que essa técnica vale bilhões.
Joshua March é esse CEO. Ele é o cofundador da SciFi Foods, uma startup de carne cultivada. Mesmo sendo executivo de um setor que pode nunca chegar a decolar, ele convenceu os investidores de que um dia isso acontecerá.
March ficou “obcecado” por carne cultivada depois de ler sobre esse assunto em “The Player of Games” (“O Jogador”), romance de ficção científica de 1988 escrito por Iain M. Banks que é cultuado por técnicos da engenharia de alimentos.
De acordo com o Good Food Institute, no final de 2022 havia 152 empresas de carne cultivada, operando em 29 países. Ao contrário de praticamente todas as outras startups do mesmo ramo, March e sua empresa SciFi estão usando a CRISPR (tecnologia que torna a edição de genes tão fácil como usar uma impressora 3D) para acelerar seus avanços.
Para Kasia Gora, CTO da SciFi, tudo é apenas uma questão de engenharia. “Adotamos uma abordagem de biologia sintética para descobrir como fazer linhas de células de carne bovina escaláveis”, explica ela.
A chave são os ciclos de engenharia que permitem a prototipagem rápida. As melhores linhagens de células irão criar a próxima rodada de modificações.
As perguntas para startups de carne cultivada em laboratório são infinitas: vocês conseguem fabricar células em grandes biorreatores, em suspensão líquida? Quais meios (ou nutrientes) são usados? Quais são os custos dos ingredientes?
“A ideia é que as células produzidas sejam de carne, mas que cresçam tal qual uma célula-tronco e se desenvolvam bem, se multiplicando em uma suspensão de célula única”, diz March.
É claro que o objetivo de todo mundo que investe em células de carne geneticamente editadas é chegar à paridade de custos com a carne tradicional. Essa meta é, aparentemente, inatingível. Por isso, a SciFi está apostando que a única maneira de escalar economicamente a carne cultivada é fazendo uso da tecnologia CRISPR.
Eles acreditam que, ao fazer ajustes iterativos, conseguirão criar linhagens de células confiáveis com sabor fiel ao da carne e estabeleceram uma meta final de US$ 1 por hambúrguer em escala comercial.
Uma vez colhidas, as células bovinas serão formuladas em um hambúrguer misto que será parecido com aqueles à base de plantas que já conhecemos – de proteína de soja e óleo de coco. O ingrediente secreto da SciFi é uma pequena porcentagem de células SciFi (5% a 20%) que estimulam nossas papilas gustativas com as notas de carne das quais sentimos falta no sabor dos concorrentes. É de dar água na boca.
Mas será que é gostoso mesmo?
Em maio passado, provei dois hambúrgueres lado a lado. Um era o próprio à base de plantas da SciFi e o outro era feito de células de carne bovina cultivadas, a um custo de cerca de US$ 250. Ambos eram igualmente bons – gordurosos, de boa textura, saborosos. Eu não soube dizer qual era de carne cultivada em laboratório.
A maioria das empresas está tentando criar carne cultivada em laboratório com pouca ou nenhuma engenharia genética – o que, apesar das mudanças de mentalidade, ainda é desencorajado. Outros acham que modificações como essa complicarão a obtenção de aprovação regulatória.
Embora a Food and Drug Administration não considere a CRISPR equiparável à modificação genética, a União Européia exigirá “maior escrutínio de seu produto por parte das agências reguladoras”.
Os investidores não parecem preocupados com as perspectivas da carne cultivada. De acordo com o Good Food Institute, US$ 2,6 bilhões foram investidos nessas proteínas alternativas desde 2010. Apesar da recente desaceleração, Joshua March já conseguiu levantar US$ 22 milhões em uma rodada recente de financiamentos.
Ele não parece preocupado em garantir a aprovação regulatória porque, como todo bom CEO, já está colocando os custos disso no orçamento. “Com o CRISPR, teremos linhagens celulares que não precisam de fatores de crescimento, apenas cultura celular simples: açúcares, gordura, aminoácidos”, explica. Segundo a SciFi, isso trará uma redução de custos mil vezes maior em escala comercial.
Para se preparar para a aprovação regulatória e testar seus produtos na comunidade de chefs de cozinha, a SciFi começará em breve a construir uma fábrica piloto. Embora a economia não funcione até que se chegue a um tanque de 20 mil litros, a SciFi já tem um de 500 litros encomendado.
Mas a questão mais importante será sempre o sabor. Em uma de suas estratégias mais impressionantes, March contratou Harold McGee para ser seu consultor culinário.
MCgee é um dos nomes mais importantes para a compreensão da ciência que sustenta o que comemos. Foi ele quem escreveu a bíblia sobre a química de como preparamos alimentos: “On Food and Cooking: The Science and Lore of the Kitchen” (“Comida e Cozinha: Ciência e Cultura da Culinária), publicado pela primeira vez em 1984.
“Esse parece ser o próximo passo”, diz McGee. “Talvez não seja a próxima tecnologia que vai vingar, mas é um esforço interessante.”
Ele provou uma amostra do hambúrguer híbrido e achou o sabor “impressionante” e melhor do que o da concorrência. Mas será que esse bom resultado se deu por conta das células bovinas?
“Parece-me que esta é uma fase realmente interessante e importante na história dos seres humanos e seus suprimentos de comida”, analisa McGee.
Quer estejamos finalmente acordando para o impacto dietético de nossas escolhas alimentares, quer estejamos reconsiderando nossa relação com os animais, as startups estão ultrapassando os limites do impossível. Para March e para a SciFi, nada disso é ficção.