Gap digital entre pais e filhos traz riscos para crianças e adolescentes
Você sabe o que seu filho faz na internet? Desinformação, cyberbulling e radicalização são algumas das ameaças que exigem diálogo e medidas assertivas
Um adolescente faz upload de vídeos e fotos. Ele usa o computador de casa, já que não tem celular. Pouco tempo depois, a Polícia Federal bate à porta: as imagens eram de cunho sexual, envolvendo crianças, e vendidas para uma rede internacional de pedofilia.
A mãe, desesperada, não sabe como reagir. Achava que o filho só estava jogando no computador. Aos 14 anos, ele sequer tinha celular. Não é uma cena imaginária, nem fictícia. Ela se repete pelo Brasil, em formatos diferentes.
Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br) demonstram esse abismo: 53% dos adolescentes entre 13 e 14 anos dizem que seus pais sabem muito pouco ou nada sobre as suas atividades online; entre jovens de 15 a 17 anos, a taxa é de 64%.
Os pais, por sua vez, confiam que sabem o quanto precisam para manter as crianças seguras: 58% dizem que aprendem sobre uso seguro da internet com os próprios filhos.
O “gap geracional” não traz bons resultados. De acordo com a Safernet, o número de denúncias de abusos sexuais contra crianças e adolescentes na internet cresceu 77% de 2022 para 2023.
Exposição de imagens íntimas, conteúdo de violência e ódio e pornografia infantil estão na lista dos temas que mais apareceram nas denúncias da Safernet, uma organização sem fins lucrativos que defende e promove os direitos humanos na internet.
“O gap geracional faz com que os pais, de fato, não estejam cientes de todo tipo de problema que os filhos podem vir a ter online”, diz Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet Brasil e coordenadora do Canal de Ajuda da organização, que recebe as denúncias.
Muitos pais não entendem que a violência virtual é tão ruim e tão danosa quanto a violência física.
O primeiro passo é admitir que há um problema. Há uma discrepância entre o que os pais acham que sabem e o que os filhos fazem online, aponta a juíza Vanessa Cavalieri, da vara de Infância e Juventude da cidade do Rio de Janeiro.
“Pais acham que os filhos estão online jogando com amigos ou estão nas redes sociais para ver dancinha. E isso não é nem a ponta do iceberg, não é nem 1% do uso”, diz.
Vanessa ocupa esse cargo há nove anos e, nos últimos meses, tem feito palestras em escolas para tratar sobre crimes digitais e proteção no ambiente online. A juíza é autora do “Protocolo Eu Te Vejo”, iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) que busca prevenir a violência nas escolas.
QUARTO FECHADO, PORTA ABERTA
Dentro de seus quartos, os adolescentes têm contato com o mundo nada regulado e monitorado das redes sociais. Estão sujeitos a manipulações algorítmicas, distorções de padrões de imagem e vício em telas – algo que também ameaça os adultos, diga-se de passagem.
Há outras ameaças que rondam os adolescentes que podem estar fora do radar dos adultos, como o cyberbullying e a radicalização. O cyberbulllying é a prática de intimidação, humilhação, perseguição ou exposição vexatória em ambientes virtuais. Segundo a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estudantes de 13 a 17 anos são as principais vítimas no Brasil.
Como os adultos não convivem com esse tipo de ameaça, tendem a reduzir seu peso, explica a autora e educadora Sheylli Caleffi. “Muitos pais não entendem que a violência virtual é tão ruim e tão danosa quanto a violência física. O cyberbullying, por exemplo, é pior do que o bullying, porque ele acompanha o adolescente o tempo todo”, aponta Sheylli.
Já a radicalização é mais sutil, porque demora anos para aparecer. Há estudos que mostram que os algoritmos das redes sociais fomentam a radicalização política. Se isso funciona com adultos, é ainda mais potente com adolescentes, cujo cérebro ainda está em processo de formação.
Os casos extremos de atiradores em escolas mostram a força que a cooptação do discurso de ódio pode ter. E existem situações pouco divulgadas que deveriam levantar mais alerta para os pais e responsáveis filtrarem o que os adolescentes leem, veem, ouvem e seguem online.
o número de denúncias de abusos sexuais contra crianças e adolescentes na internet cresceu 77% de 2022 para 2023.
O acesso a conteúdos extremos muda a regra do jogo e cria capacidades bem assustadoras para os jovens. Um adolescente está a poucos cliques (muito menos do que a sociedade gostaria) de se tornar um divulgador de discurso neonazista ou um perpetuador de violência. Os pais precisam encarar essa dura realidade, alerta o psicólogo, escritor e professor Hugo Monteiro.
Para escrever o livro “A geração no quarto: quando crianças e adolescentes nos ensinam a amar”, Monteiro entrevistou mais de três mil jovens de 11 a 18 anos, para pintar o quadro dessas pessoas Ele pesquisa questões relacionadas aos sofrimentos psíquicos de adolescentes e jovens.
“Um problema muito maior do que o pai não saber o que o menino faz online é o pai não saber quem o filho é. Existem expectativas e idealizações que os pais têm sobre como gostariam que fossem, e isso ajuda a criar a distância”, explica.
FESTA ESTRANHA COM GENTE ESQUISITA
O submundo das redes sociais é perigoso em níveis que assustam até os mais experientes. Há casos de adolescentes que viram promotores de automutilação e suicídio, ou de jovens que vendem imagens de pornografia infantil para redes internacionais. Recentemente, juízes passaram a receber situações de adolescentes hiperendividados por conta dos jogos de aposta.
“Seu filho foi convidado para uma festa e, nessa festa, você sabe que vai ter um pedófilo, um psicopata e um golpista, além de outras centenas de pessoas que você não conhece. Você deixaria ele ir sozinho? Essa festa é a internet.”, diz Vanessa Cavalieri.
Pouco mais da metade dos pais afirma que está presente e participa de todos os momentos em que seus filhos de 13 a 17 anos estão online. No entanto, 51% dos adolescentes afirmam que usam a internet em ambientes privados, onde ficam sozinhos.
Na visão de Juliana Cunha, da Safernet, os pais precisam ter gerência sobre como os filhos usam a internet. O que não significa passar o tempo todo monitorando. O desafio é saber como equilibrar esses tempos.
Alguns pais vêem o monitoramento da atividade dos filhos adolescentes como invasão de privacidade. Para os especialistas, é uma questão de segurança. E vai além: responsabilidade jurídica civil.
ABANDONO DIGITAL
Segundo a juíza, o risco de não acompanhar a atividade dos adolescentes é cometer abandono digital, que é a negligência com relação à segurança de um menor de idade em um ambiente virtual.
O abandono digital não é crime, mas existem decisões na justiça brasileira que abrem precedentes para responsabilizar os pais pelos danos causados por seus filhos. Em casos de crimes mais graves, como pedofilia, os responsáveis e os adolescentes também podem ser presos.
Existem situações que ficam fora do radar dos adultos, mas são infrações da justiça. No Rio Grande do Sul, uma mãe foi condenada a pagar R$ 5 mil de multa porque sua filha de 14 anos postava mensagens e fazia montagens de fotos contra uma colega de escola.
Crianças e adolescentes estão sujeitos a manipulações algorítmicas, distorções de padrões de imagem e vício em telas.
Em agosto, a justiça penhorou valores de pais de adolescentes que publicaram fake news contra o ministro do Supremo Tribuna Federal Alexandre de Moraes. Postagens feitas em páginas “fechadas” do Instagram também podem repercutir de maneira negativa para os pais. Isso porque a internet dá dimensões e proporções que podem sair do controle.
É o caso de duas adolescentes de 16 e 17 anos, do Espírito Santo, que tiveram um vídeo feito por amigas que viralizou. No vídeo, as garotas fazem comentários racistas. A “conversa entre amigas” teve repercussão nacional e agora ambas estão sendo processadas pelo Ministério Público por crime análogo ao racismo.
“A internet não é um diário, é uma praça pública ”, lembra a juíza Vanessa.
DA RUA VIRTUAL PARA A REAL
Para Sheylli Caleffi, a internet é menos uma festa ou praça e mais uma rua bem movimentada. “Orientar o acesso seguro às redes é a mesma coisa que orientar uma criança ou jovem ir a pé para a escola. Tem que falar dos perigos e das possibilidades”, afirma.
Seguindo na comparação com as ruas: os pais precisam orientar o uso ético e seguro da tecnologia. Conversar sobre companhias, sobre a diferença entre público e privado. Temas como privacidade de dados, funcionamento dos algoritmos e formas de assédio devem entrar no cardápio do debate pelas famílias.
O diálogo aberto depende da informação passada, mas também da escuta qualificada. Hugo Monteiro diz que o adolescente precisa ser chamado para participar da discussão e conversar de maneira lúcida sobre a forma como usa a internet. "O adulto deveria escutar o que os adolescentes têm a dizer sobre o que passam na internet."
Regras de tempo de tela se fazem necessárias, mas também dependem de monitoramento. Para Vanessa Cavallieri, os pais precisam ter pulso firme no sentido de reduzir a quantidade de horas que seus filhos passam na frente das telas.
Juliana Cunha, da Safernet, aponta que não adianta a criança ou o adolescente só ficar duas horas por dia no celular navegando em rede social, em um consumo “pobre e repetitivo”. “Precisa estar junto, aprender junto, usar junto”, diz.
A diretora da Safernet alerta que, embora os pais possam não entender ou utilizar certos aplicativos, precisam testar tudo que os filhos usam e procurar entender qual é o ambiente em que eles se inserem. O olhar aberto e curioso, com menos julgamento e mais compreensão, ajuda a criar pontes e reduzir distâncias.
E, quem sabe, destrancar a porta do quarto. “Está faltando rua de verdade e sobrando quarto trancado com internet”, finaliza Vanessa.