A força sagrada do ponto de interrogação

Hoje, quem se destaca não é quem sabe mais, e sim quem sabe o lugar e a forma certa de encontrar a informação

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Guido Sarti 4 minutos de leitura

Da Grécia antiga à inteligência artificial, a trajetória da humanidade é uma história de perguntas – o "emburrecimento" do ChatGPT é mais um exemplo disso.

“Apertem os cintos…o piloto sumiu!” (Crédito: Paramount Pictures)

Você paga uma taxa, sobe um terreno íngreme e sacrifica uma ovelha, talvez uma cabra. Ainda ofegante, levanta a cabeça devagar e seus olhos brilham: você está diante de uma profetisa possuída pelo espírito do deus Apolo. Você tem direito a fazer uma pergunta. Você não vai fazer qualquer pergunta, de qualquer jeito.

Era assim que funcionava o Oráculo de Delfos, no templo de Apolo, local sagrado procurado pelas pessoas da Grécia antiga em busca de respostas para todo tipo de pergunta – em geral, as importantes. O ChatGPT é gratuito, você pode acessar jogado no sofá de casa e seu pet continua vivo. É natural que você reflita consideravelmente menos antes de fazer uma pergunta.

aparentemente, uma das razões para o "emburrecimento" da inteligência artificial é que nossas perguntas estão cada vez piores.

A comparação pode ser um pouco esdrúxula, mas a essência de ambas as experiências é a mesma: a arte da pergunta certa E não deixa de ser quase cômico que a nova frente da tecnologia de 2023 seja a mesma do século 8 a.C.

Digo isso porque uma pesquisa das universidades de Stanford e Berkeley mostrou que o ChatGPT está ficando menos inteligente com o passar do tempo. Entre março e junho de 2023, os pesquisadores compararam a capacidade da plataforma de resolver problemas matemáticos, responder perguntas moralmente sensíveis, escrever códigos de programação e concluir tarefas de raciocínio visual.

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Evidente que um estudo acadêmico dá respaldo para a tese. Mas essa mesma percepção já vinha sendo compartilhada há um bom tempo nas redes sociais, principalmente por quem é heavy user, o pessoal que usa ChatGPT para escrever ou alterar códigos de programação, por exemplo.

Acredito que existam três hipóteses por trás dessa flutuação da IA generativa. Uma econômica, outra biológica e – a mais preponderante delas – a psicológica. Três lados desse triângulo das contradições chamado ser humano.  

A HIPÓTESE ECONÔMICA 

O ChatGPT quer economizar nos gastos com servidores e outras demandas computacionais? O cliente final está deixando de ser a pessoa física para passar a serem as empresas? Os usuários do ChatGPT estão apenas treinando uma versão demo da plataforma para que ela se torne boa o suficiente para deixar a mesa das crianças e ir sentar com os adultos?

Essas parecem perguntas boas de serem feitas para o Oráculo de Delfos ou para o ChatGPT.

A HIPÓTESE BIOLÓGICA

Uma ferramenta como o ChatGPT procura emular o funcionamento do nosso cérebro por meio da chamada rede neural artificial. Grosseiramente falando, do ponto de vista estritamente técnico, a IA e nosso cérebro funcionam da mesma maneira.

Carregamos um poderoso computador acima do nosso pescoço. Mas ele só é poderoso porque é antigo: o cérebro humano evoluiu lentamente, levando longos sete milhões de anos para atingir a capacidade atual. A capacidade e o tamanho, que é o dobro do esperado para um mamífero do nosso porte.

E, mesmo assim, a gente é capaz de esquecer por um segundo como subir uma escada ou confundir o nome da nossa tia.  

O ChatGPT foi lançado há coisa de um ano. Alguma inconsistência é esperada. 

A HIPÓTESE PSICOLÓGICA

O ChatGPT tem a interface mais intuitiva possível: basta fazer o pedido e apertar "enter". Mas não dá para dizer que o trabalho é todo dele. A força do resultado depende da qualidade, do nível de detalhamento da pergunta. E, aparentemente, uma das razões para o "emburrecimento" da inteligência artificial é que nossas perguntas estão cada vez piores – ou mais preguiçosas, para usar um adjetivo menos vago.

o cérebro humano evoluiu lentamente, levando longos sete milhões de anos para atingir a capacidade atual.

Quanto mais nítida a pergunta, mais nítida a resposta. E fazer as perguntas certas faz falta. 

Basta lembrar que praticamente todo o conhecimento gerado pela humanidade está disponível para qualquer pessoa com acesso à internet (e, meu Deus! Como a gente subestima esse verdadeiro milagre).

Todos têm acesso às mesmas coisas. Mas, hoje, quem se destaca não é quem sabe mais, e sim quem sabe o lugar e a forma certa de encontrar a informação. Esse é mais um sinal, talvez o definitivo, de que a era da informação deu lugar à era da curadoria.

Mais do que nunca, o que vale é saber fazer a pergunta certa, do jeito certo. E isso vale tanto para a inteligência artificial quanto para o Oráculo de Delfos, para uma sessão de tarô ou para a boa e velha vida.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais