Afetos artificiais: como usuários estão se conectando emocionalmente à IA
Pesquisa mostra que brasileiros já tratam chats inteligentes como amigos ou usam para tomar decisões. Especialistas apontam riscos
Vivemos uma epidemia de solidão. Ao mesmo tempo, a sofisticação da inteligência artificial e dos chats inteligentes segue em passo acelerado. É nesse contexto que a discussão ética sobre IA vai além do temor de que ela tome nossos empregos ou de uma revolta das máquinas contra os humanos. A IA está ganhando espaço como “confidente”, "conselheira" e como "companhia".
É o que aponta o estudo Inteligência Artificial na Vida Real, conduzido pela empresa de pesquisa Talk Inc. O estudo mostra como os brasileiros estão usando ferramentas de IA na prática. Foram entrevistadas mil pessoas, de todas as regiões do país, de diferentes classes sociais, que trabalham em diferentes setores.
“A OMS declarou em 2023 que vivemos uma epidemia de solidão. Pesquisas nos EUA mostram um enorme declínio no número médio de amigos que os jovens têm (com pessoas declarando não ter nenhum)”, diz Carla Mayumi, sócia fundadora da Talk Inc.
"No Brasil também vimos casos de solidão em pessoas que moram sozinhas ou que têm pouco tempo para estar com a família. Isso estimula uma busca por ‘alguém’ que escuta, está presente o tempo todo, que não julga, que demonstra ‘empatia’, guarda suas informações e conversa com você.”
No fenômeno recente das IAs conversacionais há uma tendência crescente de antropomorfização dessas ferramentas. Ainda mais quando a "entidade" do outro lado tem voz. Isso faz com que muitos usuários criem algum tipo de afeto ou apego emocional.
Em setembro, a própria OpenAI, criadora do ChatGPT, lançou um relatório apontando preocupação com a possibilidade de as pessoas virem a usar demais a ferramenta como companhia, potencialmente levando à “dependência”.
Esse receio cresceu com o lançamento do modo de voz avançado do ChatGPT, que soa incrivelmente realista, responde em tempo real, pode se ajustar a interrupções e reproduz tipos de sons que as pessoas fazem durante conversas, além de avaliar o estado emocional de quem está falando com base no tom de voz.
De acordo com relatório da OpenAI, “os usuários podem formar relacionamentos sociais com a IA, reduzindo sua necessidade de interação humana — potencialmente beneficiando indivíduos solitários, mas possivelmente afetando relacionamentos saudáveis”.
Esse apego aumenta quando consideramos o quão sofisticadas essas ferramentas têm se tornado. Uma das primeiras startups unicórnio usando IA afetiva é a Character.AI, criada por ex-funcionários do Google. A empresa oferece avatares de pessoas, como entes queridos que já morreram.
Já a Hume AI, cofundada por Alan Cowen, que trabalhava com tecnologias emocionais no Facebook, é voltada para interfaces de vozes empáticas. Ele diz que "se especializam em personalidades empáticas que falam da mesma forma que as pessoas, e não como uma assistente virtual".
O JEITO BRASILEIRO DE SE COMUNICAR
O estudo da Talk Inc. conclui que os brasileiros, por serem mais comunicativos, dão match no jeito conversacional de ferramentas como ChatGPT, que reproduz o jeito natural de conversar e não exige habilidades de escrita para responder.
“O fato de os chats inteligentes terem sido lançados de forma gratuita, facilitado pelo uso em qualquer idioma, foi um fator fundamental para que o ChatGPT hoje esteja sendo usado por brasileiros e brasileiras de qualquer classe e idade”, explica João Paulo Cavalcanti, cofundador e head de futuros da TALK Inc.
“O ChatGPT no Brasil acabou virando quase uma marca de chatbots inteligentes reconhecida massivamente. As pessoas se referem a qualquer chat como o GPT, dando inclusive apelidos carinhosos a ele.”
Para Domenico Massareto, fundador da RAIN, startup de inteligência artificial para marketing e publicidade, do ponto de vista da assertividade, o brasileiro é menos direto que o norte-americano e muito menos direto que o europeu. E tem uma língua que difere muito no seu colóquio, com presença de gírias e expressões que humanizam e situam conversas em contextos bem definidos de carga emocional.
“A capacidade crescente de entendimento desses assistentes também amplia o vocabulário de uso entre brasileiros e IAs: antes falávamos com eles usando comandos como ‘tocar música’, ‘escrever um e-mail’ etc. Hoje já temos conversas mais naturais”, diz.
Mas ele faz um alerta: “Somos mamíferos sociais. Queremos e precisamos de conexão emocional. O risco está na ética da empresa que será dona dessas ‘relações.”
MINHA AMIGA, IA
Esse tipo de conversa do jeitinho brasileiro faz com que muitos passem a enxergar essas ferramentas como verdadeiros parceiros. Entrevistados pela pesquisa chegam a descrever esses chats como colegas de trabalho, ou sua própria memória.
A pesquisa traz histórias de personagens que usaram a IA como uma parceira na tomada de decisão. Em uma delas, uma jovem se aconselha com a IA para fazer uma dieta. Acabou recorrendo a um médico depois de ficar desnutrida. Em outro caso, um senhor de 70 anos usou a ferramenta na busca de emprego. Aceitou a sugestão de virar corretor e já tinha vendido dois imóveis.
Os entrevistados afirmam usar a ferramenta como amigo ou conselheiro para resolver questões pessoais. “A IA não substitui psicólogos, coachs ou qualquer ser humano", lembra Jefferson Denti, chief risruption officer da consultoria Deloitte.
"As ferramentas de IA são ótimos co-pilotos para temas operacionais, mas não recomendo como um conselheiro. Existem riscos de dependência emocional, exposição de informações pessoais e recomendações inadequadas para o usuário”, afirma Denti.
QUER CASAR COMIGO?
A exemplo da história retratada do filme Her, de 2013, em que o protagonista se apaixona por um sistema operacional de voz, há casos de pessoas que vivem um relacionamento afetivo com IAs – principalmente na Ásia.
Os entrevistados foram perguntados sobre o que pensavam desse tipo de relacionamento. Sete em cada 10 acreditam que isso não deveria ser permitido. Mas para 31%, as pessoas deveriam ter o direito de casar com uma inteligência artificial.
Para Domenico Massareto, fundador da RAIN, startup de inteligência artificial para marketing e publicidade, esse lado da dependência emocional faz parte do modelo de negócio. “Somos mamíferos sociais. Queremos e precisamos de conexão emocional. O risco está na ética da empresa que será dona dessas ‘relações’.
Para ele, "uma I.A. que manipula as pessoas tornando-as dependentes não seria diferente do que já acontece hoje com os feeds do TikTok e do Instagram, construídos para hackear e prender a atenção humana.”
Por isso, a pesquisa ressalta a importância de garantir que o uso crescente da IA seja acompanhado de medidas de transparência e responsabilidade, minimizando riscos como a manipulação de dados, vieses algorítmicos e aumento da desigualdade social.
IA COMO ASSISTENTE
Segundo a pesquisa da Talk, 57% das pessoas usam assistentes virtuais para tarefas diárias. De organizar agendas até configurar lembretes, essas IAs têm facilitado o dia a dia. As assistentes virtuais, como Alexa e Google Assistant, tornaram-se parte essencial da rotina de muita gente.
“Já começamos a imaginar um futuro onde seu assistente será seu 'gêmeo', seu assistente virtual, que vai tornar tudo mais produtivo. Estamos apenas começando a explorar todo o potencial que essas tecnologias têm a oferecer”, comenta Carla.
Para a Talk Inc., não há repertório suficiente ainda para entendermos o efeito criado pela acelerada tendência do “afeto artificial”. “A tendência é que acreditemos (e diferentes especialistas levantam esse ponto) que como companhia, ‘uma IA é melhor que nada’”, diz Carla.
“Tudo isso é um indício de que os afetos artificiais realmente chegaram para ocupar um espaço em nossa vida. Pense na revolução dos Pets, que nem é tão antiga assim. Eles estão por toda parte, apaziguando a solitude e a solidão das pessoas na era digital. Agora, pense que todo tipo de companhia digital poderá ser criada.”