ChatGPT como laboratório de aprendizagem para o profissional do futuro

A relação entre a escrita e a transformação ontológica das profissões - um olhar para os profissionais do conhecimento

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Clara Cecchini e Silvia Piva 8 minutos de leitura

Convivemos há anos com arautos que proclamam mudanças radicais na forma de trabalhar: “tudo vai mudar, em todos os segmentos, prepara-te ou sucumbirás!”.

Acontece que, em meio a essa sensação cataclísmica, podemos deixar passar as oportunidades cotidianas de vivenciar o processo de forma consciente e intencional, o que é essencial para sustentar nossa produtividade presente e pavimentar nossa carreira para o futuro próximo.

A chegada massiva do ChatGPT é, sem dúvida, a mais rica dessas oportunidades. Mas, como é nosso vício, reduzimos a reflexão sobre ele quanto ao “usar” ou “não usar”; “substituir” ou “não substituir”; “ser assistente” ou “ser concorrente”. E, nessa distração, perdemos inúmeras oportunidades de aprendizado na nossa rotina.

Não é exagero dizer que nós duas que escrevemos e você que nos lê, em conjunto, estamos construindo a transição das nossas profissões para o futuro.

Parece que falamos tanto em futuro que imaginamos que ele é uma entidade que brotará em determinado momento, e nós nos adaptaremos ou não. Mas não é assim.

A noção de autor enfrenta um desafio sem precedentes com a ascensão das ferramentas de IA generativa.

Vamos criar e descontinuar inúmeros MVPs (minimum viable product, ou produto viável mínimo) dessas novas formas de trabalho. Nosso sucesso profissional e a qualidade do mundo em que iremos viver dependem do quanto aprenderemos nesse processo de testes.

Só que não é a forma de aprender a que estamos acostumados, a do “consumo de conteúdo” ou “desenvolvimento de habilidades”. É um aprendizado que cria soluções para perguntas que estão sendo feitas pela primeira vez.

MUDANÇA DE PARADIGMA

E o que o Chat GPT tem a ver com isso? Ele é um imenso laboratório para essa nova forma de aprender e pensar, pois atua com a linguagem fundamental dessas duas faculdades humanas, aquela que praticamos todos os dias, na maior parte das profissões: a escrita.

A IA generativa não é só uma peça que entra no nosso processo de escrita e substitui uma etapa ou outra, melhora, acelera. Ela muda sistemicamente o processo da escrita, subverte a própria noção de autoria, desloca os lugares de geração de valor, em um processo análogo ao que está acontecendo em inúmeras profissões – em especial, as do conhecimento.

Escrever é mais do que comunicar. É um ato de consciência, um processo de ordenar ideias e sentimentos, de buscar sentido e lógica, de produzir conhecimento. A escrita alfabética é a arquitetura da ciência, da filosofia, da arte literária. E não deixará de ser, ao menos não por conta das tecnologias que vislumbramos até agora.

Mas a escrita está passando por uma mudança de paradigma com a popularização das ferramentas de IA. E, já que escrevemos todos os dias, podemos nos dedicar não apenas a aprender a usar as ferramentas como também a entender como esse uso pode nos ajudar a desenhar nossas profissões.

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Mas como? Um bom exemplo é dedicar, ao usar o ChatGPT, um pouco de energia para pensar sobre a noção de autoria. Em sua concepção tradicional, é um conceito intrinsecamente ligado à figura humana, o originador primário de um texto, alguém cuja subjetividade e experiências individuais são impressas nas palavras.

No entanto, essa noção do autor enfrenta um desafio sem precedentes com a ascensão das ferramentas de IA generativa. Observamos um fenômeno que poderíamos chamar de "autor” ou “coautor maquínico".

As máquinas, equipadas com algoritmos avançados, não apenas replicam a escrita humana, mas a reinventam, criando textos com uma eficiência e uma diversidade de estilos que desafiam nossa compreensão tradicional do processo criativo.

Escrever é um ato de consciência, um processo de ordenar ideias e sentimentos, de buscar sentido e lógica, de produzir conhecimento.

Esta evolução nos convida a reexaminar e redefinir o conceito de autor – e exercê-lo também de forma diferente. Os grandes modelos de linguagem (LLMs, na sigla em inglês), com sua capacidade de gerar texto de forma autônoma, sugerem uma nova forma de autoria. Uma que não é exclusivamente humana, mas sim uma colaboração entre humanos e máquinas.

Esta nova forma de autoria levanta questões importantes sobre criatividade, originalidade e propriedade intelectual. Mas invalidar a autoria porque o texto foi escrito com o ChatGPT é uma conclusão, ao mesmo tempo, apressada e preguiçosa.

SEM FÓRMULAS PRONTAS

Em "A Noção de Autor em Barthes, Foucault e Agamben", Joachim Azevedo Neto diz que o autor, para Foucault, é um “instaurador de discursividades”. Dessa perspectiva, menos importa quantos cliques no teclado e mais importa a implicação e responsabilidade pessoal com o que é colocado em palavras.

E é aí que observamos que a superficialidade no entendimento da ferramenta puxa o tapete de profissionais, com atalhos que se tornam cada vez mais visíveis: discursos genéricos na boca de pessoas que têm o que dizer; textos pasteurizados em perfis que querem reforçar a “marca pessoal”.

A criação é produto da cultura e a escrita com IA é uma nova forma de interação com a cultura humana.

Já notamos uma certa “templeitização” da escrita, a qual já foi refúgio da subjetividade humana, da organização lógica de ideias e pensamentos aleatórios – e que agora parece caminhar para uma era de automatização e de parametrização de ideias baseadas em probabilidades.

Mas será que é a velocidade na produção que vai, de verdade, nos valorizar como profissionais?

Como mais um aspecto da complexidade do nosso contexto, o oráculo maior de todos, o Fórum Econômico Mundial, coloca a profissão de editor entre aquelas que vão crescer com a inteligência artificial. Como usar os ChatGPTs para nos tornarmos melhores editores, e não piores escritores – eis a questão.

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Utilizando um exemplo concreto: profissionais do Direito se utilizam, como ponto de partida, da escrita para o exercício profissional. Sejam advogados ou juízes, todos precisam, de alguma forma, elaborar sua comunicação por meio desse tipo de linguagem.

A elaboração de argumentos ou de decisões pressupõe um processo intelectual: da conexão entre os acontecimentos do mundo real ao seu encontro com a lei. Decorrem do raciocínio lógico, da conexão com o repertório prévio e da excelente expressão linguística. Mas também de instinto, de ideias, da faculdade criadora e de inspiração.

A IA generativa cria conteúdo a partir de padrões extraídos dos vastos conjuntos de dados textuais, o que já tem acarretado, muitas vezes, a identificação de alguns padrões previsíveis e reconhecíveis. Uma espécie de escrita homogênea, se não for devidamente personalizada.

Não achamos que utilizar a IA no processo da escrita seja errado, feio ou duvidoso. Porém precisamos entender o nosso papel de criação nesse processo conjunto, já que ainda somos nós, primordialmente, que incluímos os comandos para que a escrita híbrida aconteça. E continuamos sendo nós, ainda, os responsáveis pela divulgação dos textos produzidos em conjunto com a IA.

AUTORES E CO-AUTORES

O que precisamos aprender é, nas palavras de Flusser, a arte da transcodificação: usar nosso conhecimento da escrita alfabética enquanto aprendemos o que a escrita codificada nos oferece – e o que ela nos nega.

Além disso, é sempre importante lembrar que tudo o que criamos dialoga com o legado daqueles que, ao longo dos séculos, sistematizaram experiências e reflexões. A criação é sempre produto da cultura – e a escrita com IA é uma nova forma, extremamente potente e digitalmente transformada, de interação com a cultura humana.

Da parte que nos cabe, temos nossa responsabilidade e compromisso como aqueles que “assinam embaixo” do texto produzido, ainda que seja uma edição de um texto produzido por IA.

Daí a pergunta: estaremos, neste momento de experimentação, delegando demais à máquina – não apenas a tarefa de escrever, mas a própria estrutura do nosso pensamento, nossa capacidade de reagir, de sentir?

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Continuaremos a escrever alfabeticamente a partir do sentir, do instinto ou já estamos trilhando o caminho de uma escrita binária, impulsionada por prompts que nos afastam da escrita artística, reflexiva, em favor de uma escrita matemática e parametrizada?

Talvez nosso papel seja fazer com que essa autoria híbrida mantenha a nossa crocância: vivacidade e autenticidade que só a escrita humana baseada num repertório do “sentir” pode oferecer.

É nossa responsabilidade, como cocriadores nesta simbiose com a IA, assegurar que o texto final reflita não apenas

menos importa quantos cliques no teclado e mais importa a implicação e responsabilidade pessoal com o que é colocado em palavras.

competência técnica na manipulação das palavras, mas também a essência de nossa humanidade. Porque, se cada vez mais sabemos que não faz sentido trabalhar como máquinas, o valor de uma escrita puramente maquinal irá cair por terra logo ao virar a próxima esquina.

Já a verdadeira coautoria nos levará a lugares que temos o privilégio e a responsabilidade de explorar pela primeira vez. E, também pela primeira vez, isso não está apenas ao alcance de meia dúzia de pessoas trancadas a sete chaves.

Não que o acesso seja universal, ainda mais em um país como o nosso. Mas nós quatro – Sílvia, Clara, você e o GPT – certamente podemos empreender esse caminho. Façamos valer a oportunidade de sermos criadores de futuros, e não apenas usuários de ferramentas.


SOBRE A AUTORA

Clara Cecchini é escritora e sócia na teya ecossistema. Silvia Piva é advogada e pesquisadora sobre IA responsável no Instituto de Est... saiba mais