Conheça as iniciativas que usam IA para fortalecer a democracia
Ferramentas que usam IA generativa podem aumentar a transparência de dados de governos e incentivar a conexão da sociedade com os processos políticos
Em 2024, 64 países vão às urnas, ao mesmo tempo em que a inteligência artificial generativa está mais acessível e sofisticada. A disseminação de conteúdo falso, as deepfakes e a escalada da desinformação geram uma crise de insegurança na sociedade, diante da manipulação da verdade. As instituições democráticas estão sob ataque e ainda há pouca regulamentação sobre o uso da tecnologia.
Mas, além dos riscos e enormes desafios, a inteligência artificial generativa carrega o potencial de fortalecer a democracia. Alguns países testam a tecnologia como forma de aumentar a transparência, a rapidez e a participação do público no sistema democrático. A boa notícia? O Brasil está nessa lista.
O momento não poderia ser mais propício: metade do mundo passará por eleições em 2024. Nos próximos meses, serão escolhidos os representantes do parlamento europeu, o próximo presidente dos Estados Unidos, o próximo chefe de Estado do Uruguai e as lideranças municipais no Brasil.
Nesse cenário, o debate sobre IA e política acabou se voltando para preocupações com a disseminação de notícias falsas em campanhas eleitorais. Autoridades pelo mundo apoiam a limitação desta área da IA generativa, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que lançou regras proibitivas para campanhas que utilizam tais sistemas. Só que a IA generativa é muito mais do que deepfakes.
“Quando falamos em IA generativa, estamos falando em automação de processos em escala”, explica Ana Freitas, diretora do Anacron.ia, projeto de formação educativa e consultoria sobre inteligência artificial generativa.
Ela é especialista em IA voltada para o mercado criativo e estratégico. Longe de achar que esses sistemas são neutros, Ana entende que a tecnologia tem papel de apoiar a inteligência política de congressistas.
O primeiro passo é ver a tecnologia pelo potencial que ela tem, explica Pedro Markun, hacktivista e coordenador de inovação com mais de 10 anos de experiências em projetos de tecnologia, comunicação e política. “Precisamos fazer amizade com a IA, sair da relação adversativa, seja ela de medo ou de desprezo. Temos que saber abraçar a IA para entender como ela pode nos ajudar”, diz.
Plataformas que existem hoje conseguem suprir, em parte, problemas do cotidiano do parlamentar, como pesquisa de casos, consulta de processos e avaliação de projetos parecidos aos que pretende propor, por exemplo – o que seria mais do que uma mão na roda para o legislativo brasileiro. Só na Câmara Estadual de São Paulo, 40 mil projetos de lei estão parados em fases diferentes de tramitação.
Um levantamento feito pelo jornal "O Globo" mostrou que, de 2009 a 2020, as Câmaras de São Paulo e do Rio de Janeiro aprovaram 267 leis inconstitucionais no âmbito federal. A IA pode mostrar tais discrepâncias em poucos cliques.
Quando aplicada a este sistema, ela poderia impedir que regras inconstitucionais passassem por comissões de análise, liberando tempo dos parlamentares.
DEMOCRAC.IA AGORA
A IA generativa não está só no campo das possibilidades políticas. Existem testes avançados de uso prático da tecnologia. No Reino Unido, o governo tem um protótipo experimental de um chatbot que usa a tecnologia de grandes modelos de linguagem (LLM, na sigla em inglês). É o modelo do ChatGPT.
O Parlamento Europeu, que recentemente aprovou a primeira regulamentação de IA do mundo, também testa dois bons usos para a tecnologia. Uma é para digitalizar documentos antigos e parametrizá-los em um único formato, o Archibot.
A ideia de usar a IA para ampliar as vozes de quem participa no debate democrático é um atrativo.
Mais do que digitalizar, o sistema usa LLM para permitir a pesquisa dos documentos, explica Luís Kimaid, cientista político e diretor da Bússola.Tech – think tank global que promove a modernização e a transformação digital de parlamentos pelo mundo.
O Archibot não é um repositório de dados, mas um lugar vivo onde é possível interagir e comparar informações históricas. “O ritmo que os parlamentos estão hoje para o uso da IA é fascinante. Na minha visão, a gente está vivendo um iluminismo para o uso da tecnologia”, diz Kimaid.
IA NA POLÍTICA BRASILEIRA
No Brasil, a Câmara dos Deputados tem um sistema próprio que utiliza IA desde 2018, o Ulysses. A plataforma funciona para ações internas da casa, como, por exemplo, análise de emendas legislativas e interpretação de comentários do público em projetos de lei.
A IA generativa amplia o escopo e a capacidade desse sistema digital. O Senado está em testes finais para lançar uma ferramenta de LLM, um "ChatGPT" com as principais normas brasileiras: a Constituição Federal, o Código Civil e o Código Criminal.
O bot está sendo treinado para responder a solicitações feitas por especialistas em lei, mas também por leigos. Ele consegue responder a qualquer um e modula o formato das respostas a partir do estilo que for buscado.
Segundo o líder de tecnologia do Senado, João Lima, os testes usam o modelo de geração aumentada de recuperação (RAG, na sigla em inglês). Isso significa que o sistema consegue unir LLM com dados adicionais. O governo consegue construir uma base de dados atualizada e a IA generativa busca também por ali.
Na prática, o GPT-Normas vai sintetizar e simplificar informações, inclusive para congressistas. “Ele vai conseguir responder ao cidadão comum, que não conhece a linguagem técnica das leis. Muitas vezes, a linguagem jurídica é uma barreira para a participação do cidadão”, diz Lima.
Outra ferramenta que o Senado está criando é um sistema inteligente de transcrição. Feito com o Whisper, da OpenAI, o robô de transcrição vai agilizar o trabalho dos taquígrafos nas sessões parlamentares, além de habilitar o destaque de falas e o reconhecimento de voz.
Segundo Lima, o sistema reconhece as vozes que estão no plenário e está sendo treinado para transcrever com precisão o que cada um diz.
Entender que a tecnologia também tem filtros e reproduz preconceitos faz parte do “letramento de IA”.
Na área de tecnologia do Senado desde 1995, Lima lidera o LexML Brasil, iniciativa de governo eletrônico do Senado, além de ser um dos maiores especialistas em uso de IA na casa.
Por mais que já exista a transcrição oficial, o formato atual, que depende dos taquígrafos, demora pelo menos uma semana para gerar o documento que descreve as falas de cada político durante as sessões. Isso também torna lento o processo de checagem de informações. Kimaid afirma que a celeridade da transcrição pode apoiar a transparência e também o combate à desinformação.
Caso um áudio ou vídeo de algum político em debate no Congresso seja alterado, haverá formas de provar que aquilo não foi dito ou feito a partir das transcrições. “É usar a IA para combater o mau uso da IA”, diz o cientista político.
POLÍTICA AINDA É CIÊNCIA HUMANA
A ideia de usar a IA para ampliar as vozes de quem participa no debate democrático é um atrativo, diz Fernando Haddad de Moura, chief operations officer (COO) da Legisla Brasil, organização não governamental que trabalha para potencializar e capacitar agentes políticos.
O foco do trabalho de Moura e da ONG é ampliar a representatividade e a diversidade na política brasileira. Eles já foram responsáveis por trabalhar com mais de 60 candidatos de 15 partidos.
A Legisla Brasil está trabalhando em uma inteligência artificial voltada para assessores de parlamentares. Será como uma grande base de dados para analisar a constitucionalidade de projetos de lei, dados territoriais e otimizar os textos. “Serão informações essenciais para reger um planejamento estratégico”, diz Moura.
Outro ponto no qual a IA da Legisla deve bater é em como entender o impacto dos projetos de lei em grupos minorizados da população.
A fase de pesquisa e análise costuma ser feita por equipes de assessores. Quanto menor a instância, menos pessoas no gabinete. Vereadores de municípios menores e de partidos pequenos, muitas vezes, não contam com grupos para criar leis. A IA pode equilibrar essa conta.
o Senado está criando um sistema inteligente de transcrição para agilizar o trabalho dos taquígrafos nas sessões parlamentares.
Para Pedro Markun, o uso positivo da IA generativa no âmbito político é exatamente este: igualar as bases para a atuação parlamentar. “De alguma maneira, ajuda a democratizar um pouco mais um jogo onde quem tem mais recurso, tem mais voto."
Mesmo com ferramentas tecnológicas, o trabalho final ainda depende, e muito, dos humanos, como explica Requião Filho (ex-PT e atualmente sem partido). O deputado federal paranaense usou, no ano passado, o ChatGPT para apoiar a produção do projeto de lei 469/2023, que regulamenta uso de IA pelo governo estadual.
O parlamentar conta que, embora a ferramenta tenha deixado o trabalho de pesquisa mais rápido, ainda encontrou muitos erros de interpretação. “A IA não tem sensibilidade política. Se for utilizada de forma errada, pode criar um erro tão grande que vai atrasar todo o trâmite. Precisa ter um bom motorista”, reconhece Requião Filho.
DESVIANDO DOS VIESES
A IA que a Legisla está criando tem uma preocupação com o “lado social” da tecnologia. Segundo Moura, eles estão treinando o sistema para não replicar vieses negativos, como racismo, misoginia e homofobia.
Entender que a tecnologia também tem filtros e reproduz preconceitos faz parte do “letramento de IA”, um processo mais importante do que as ferramentas escolhidas. Markun lembra que é a partir desta educação – oferecida por poucos partidos – que a classe política, de fato, chegará a um uso de impacto positivo.
Em muitos casos, a procura por utilizar sistemas automatizados parte do próprio parlamentar, ou de algum assessor “geek”, que já testou essas ferramentas para uso próprio. João Lima, do Senado, dá cursos intensivos sobre IA em Brasília. O público é formado por servidores, assessores e parlamentares.
Lima conta que, este ano, teve que aumentar as turmas por causa da demanda. Mesmo assim, são workshops de 12 horas, com seis horas de teoria e seis de prática.
Mas também há resistência dos políticos. Requião Filho conta que, depois que apresentou o PL, muitos deputados paranaenses tiveram interesse em usar o ChatGPT. “Alguns gabinetes se opuseram ao uso da ferramenta. É um medo geracional. Transparência assusta muito as casas de leis”, diz o deputado.
A IA pode mesmo ser uma forte aliada da democracia. Mas os humanos, eles ainda são as peças mais fundamentais e necessárias para mudar o sistema político. Afinal, política ainda é uma ciência humana.