Estilo Black Mirror: pode uma IA ajudar a aliviar o luto por um ente querido?

As possíveis consequências do uso em larga escala de IA para lidar com o luto fazem parte de “um vasto experimento tecnocultural”

Crédito: Fast Company Brasil

Kirsten Grieshaber e Haleluya Hadero 4 minutos de leitura

Quando Michael Bommer descobriu que tinha câncer de cólon terminal, ele passou muito tempo conversando com sua esposa, Anett, sobre o que aconteceria após sua morte.

Ela disse que uma das coisas de que mais sentiria falta seria poder fazer perguntas sempre que quisesse, porque ele é muito culto e sempre compartilha sua sabedoria. Dessa conversa surgiu uma ideia: recriar sua voz usando inteligência artificial para que ela pudesse ouvir seus conselhos mesmo após sua morte.

O empreendedor, de 61, anos procurou seu amigo Robert LoCascio, CEO da plataforma Eternos. Em dois meses, eles construíram “uma versão abrangente e interativa de IA” de Bommer – o primeiro cliente da empresa.

A Eternos afirma que sua tecnologia permitirá que a família de Bommer “se envolva com suas experiências e percepções de vida”. A empresa está entre várias que surgiram nos últimos anos no crescente espaço de tecnologia de IA voltada para o luto.

Uma das startups mais conhecidas nesta área, a StoryFile, permite que as pessoas interajam com vídeos pré-gravados e utiliza algoritmos para detectar as respostas mais relevantes às perguntas dos usuários.

Outra empresa, chamada HereAfter AI, oferece interações semelhantes através de um avatar criado a partir de histórias pessoais ou de respostas a uma lista de perguntas.

Existe também o Project December, um chatbot que permite que os usuários preencham um questionário com fatos importantes sobre uma pessoa e suas características – e, por US$ 10, oferece a possibilidade de ter uma conversa em texto com esse personagem.

Já a Seance AI oferece sessões espíritas fictícias gratuitamente, com recursos como recriações de voz de entes queridos geradas por IA, disponíveis por US$ 10.

DEADBOTS E GRIEFBOTS

Embora alguns tenham adotado esta tecnologia como forma de lidar com o luto, outros se sentem desconfortáveis ​​com o fato de as empresas utilizarem inteligência artificial para tentar manter interações com aqueles que já se foram. Alguns ainda temem que isso possa tornar o processo de luto mais difícil.

Katarzyna Nowaczyk-Basinska, pesquisadora do Centro para o Futuro da Inteligência da Universidade de Cambridge e coautora de um estudo sobre o tema, ressalta que se sabe muito pouco sobre as possíveis consequências de curto e longo prazo do uso de simulações digitais de pessoas falecidas em grande escala. Por enquanto, isso continua a ser “um vasto experimento tecnocultural”.

“O que realmente diferencia esta era – algo inédito na longa história da busca da humanidade pela imortalidade – é que, pela primeira vez, o processo de pensar nos mortos e as práticas de imortalização estão totalmente integrados ao mercado capitalista”, diz ela.

"Volto Já", episódio do seriado Black Mirror que trata sobre o tema (Crédito: Netflix)

Matthias Meitzler, sociólogo da Universidade de Tuebingen, na Alemanha, afirma que, embora alguns possam ficar surpresos ou até assustados com a tecnologia – “como se uma voz do além estivesse falando” –, outros a verão como um complemento às formas tradicionais de lembrar de entes queridos falecidos, como visitar o túmulo, olhar fotos e ler cartas antigas.

Mas Tomasz Hollanek, que trabalhou ao lado de Nowaczyk-Basinska no seu estudo sobre “deadbots” e “griefbots”, como são chamados estes chatbots, diz que a tecnologia levanta questões importantes sobre os direitos, a dignidade e o poder de consentimento de pessoas que já faleceram. 

Pela primeira vez, o processo de pensar nos mortos e as práticas de imortalização estão integrados ao mercado.

A versão IA de Bommer criada pela Eternos usa um modelo interno, bem como grandes modelos externos de linguagem desenvolvidos por empresas como Meta, OpenAI e Mistral AI. A Eternos grava os usuários falando 300 frases e depois comprime essas informações através de um processo computacional de dois dias.

Os usuários podem treinar ainda mais o sistema de inteligência artificial respondendo a perguntas sobre suas vidas, visões políticas e vários outros aspectos de suas personalidades. A voz de IA, cuja configuração custa US$ 15 mil, pode responder perguntas e contar histórias sem repetir respostas pré-gravadas.

Os direitos legais pertencem à pessoa sobre a qual ela foi treinada, podem ser tratados como um ativo e passados para outros membros da família.

Michael Bommer (Crédito: Markus Schreiber/ AP)

Bommer tem passado a maior parte do seu tempo alimentando a IA com frases “para dar a ela a oportunidade não apenas de sintetizar minha voz, mas também de capturar emoções”.

No caso de sua esposa de 61 anos, ele não acha que isso atrapalharia o processo de luto. Mas a própria Anett Bommer é mais hesitante em relação ao novo software e se o usará após a morte do marido.

No momento, ela se imagina mais sentada no sofá com uma taça de vinho, abraçando um dos suéteres antigos de Bommer e lembrando dele, em vez de sentir a necessidade de conversar com um robô de voz. “Mas quem sabe como será quando ele não estiver mais por perto?”, diz ela.


SOBRE A AUTORA

Kirsten Grieshaber e Haleluya Hadero são repórteres da Associated Press. saiba mais