O dia depois de amanhã da IA generativa

Quão diferente este ciclo tecnológico é de todos os outros que vivemos no último século?

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Herman Bessler 6 minutos de leitura

Há pouco mais de um século, a empresa moderna foi forjada no chão de fábrica por Frederick Taylor. Com o ímpeto de aplicar o método científico à gestão organizacional, Taylor pesquisou, testou e desenvolveu o jeito "ótimo" de trabalhar, deixando para trás a forma artesanal com que se produzia até então.

Em sua obsessão pela produtividade, se perguntou: quanto custaria para que operários abrissem mão de sua autonomia para realizar cada tarefa exatamente como ele ordenava, no prazo estabelecido e sem desvios?

A surpreendente resposta foi: não muito (cerca de 25%). Seu objetivo era otimizar a produtividade, delegando o trabalho pensante, criativo e inovador para um pequeno conjunto de lideranças. As externalidades foram avassaladoras.

Hoje, a transformação da IA está na pauta de todo conselho executivo que se respeite. Discute-se profundamente como implementar, quais ferramentas utilizar, quais as regras de compliance e governança; e muito pouco sobre os efeitos da IA generativa no sistema operacional das organizações, na cultura e na estratégia.

Podemos dizer que a IA generativa fará no século 21 o papel equivalente ao dos operadores e executores das empresas do século 20. Mas estamos fazendo as perguntas certas?

À medida que as tecnologias de propósito geral, como a IA generativa, se disseminam em uma curva exponencial, as empresas brasileiras se encontram em um caminho inevitável: um futuro onde essas ferramentas deixam de ser um diferencial competitivo e se tornam commodities. Este cenário não é uma questão de “se”, mas de “quando”.

Conforme a automação baseada em inteligência artificial se tornar uma commodity simétrica a todas as organizações, o que sustentará um diferencial competitivo é a capacidade instalada de se desenvolver e se adaptar. Eventualmente, as capacidades de construir agentes, integrar fluxos de trabalho e otimizar processos com IA serão tão comuns quanto o uso de planilhas.

As transformações de sucesso são aquelas que vêm acompanhadas de mudanças culturais profundas.

Como prosperar quando todos têm acesso às mesmas capacidades tecnológicas? Quão diferente este ciclo tecnológico é de todos os outros que vivemos no último século? Como será o dia depois de amanhã da IA generativa?

Aqueles que obtêm ganhos significativos de produtividade podem ficar tentados a realizar demissões em massa, e terminar por criar problemas culturais insolúveis. Aqueles que adotarem centenas de ferramentas podem acabar com um débito técnico inconciliável. 

Outros talvez sofram com a dificuldade de criar sistemas de aprendizagem distribuídos por toda a organização, aproveitando o melhor da inteligência coletiva. Dentre todos os fatores, separei três elementos críticos a observar como potenciais diferenciais competitivos sustentáveis neste cenário.

CURIOSIDADE COMO MOTOR

Ela, que sempre foi o motor da inovação e do aprendizado, agora se torna o diferencial humano essencial em um ambiente onde a tecnologia pode fornecer respostas rápidas, mas nem sempre as mais relevantes.

Em vez de aceitar a primeira resposta fornecida pela IA, os indivíduos curiosos usarão essas respostas como ponto de partida para perguntas ainda mais profundas. Indivíduos curiosos seguem explorando, aprendendo, brincando com as possibilidades.

A curiosidade é uma prática que pode ser cultivada e aprimorada ao longo do tempo. Historicamente, ela foi a força motriz por trás das grandes descobertas científicas e filosóficas. Sócrates não dava respostas, mas fazia perguntas, levando seus interlocutores a explorar suas próprias suposições e a descobrir verdades mais profundas.

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A IA pode fornecer respostas instantâneas para quase qualquer pergunta factual; já o verdadeiro valor da curiosidade reside na sua capacidade de gerar perguntas significativas. Um método moderno de cultivar a curiosidade é a prática do "questionamento aberto", onde a ênfase não está na obtenção de uma resposta específica, mas na exploração de múltiplas perspectivas e possibilidades.

Isso pode ser visto em práticas como o design thinking, que incentiva a formulação de perguntas desafiadoras para entender profundamente as necessidades dos usuários e inovar de maneira significativa.

Como prosperar quando todos têm acesso às mesmas capacidades tecnológicas?

Outro método eficaz é o uso de "perguntas de reflexão", que convidam as pessoas a reconsiderar suas experiências e conhecimentos à luz de novas informações. A reflexão estruturada, onde as perguntas são cuidadosamente elaboradas para provocar pensamento crítico, é uma maneira poderosa de explorar o que a IA pode oferecer, indo além do óbvio para descobrir insights inesperados.

A curiosidade pode e deve ser estimulada por meio da educação não-formal e de métodos de aprendizagem baseados em desafios reais, com conexão emocional ao contexto do colaborador.

CURADORIA COMO ENABLER

A habilidade de curador permite que as organizações separem o sinal do ruído, garantindo que a informação e o conhecimento sejam utilizados de maneira eficaz e produtiva. Quando as informações são vastas e facilmente acessíveis, a curadoria se torna uma habilidade crítica.

A curadoria, a prática de selecionar e organizar informações de maneira que agregue valor, não é uma habilidade nova, mas sua importância se intensifica em um mundo saturado de dados. No passado, era o domínio de bibliotecários, editores e especialistas em diversas áreas.

Hoje, com a proliferação de conteúdo gerado por IA, a capacidade de curar informações relevantes e de alta qualidade é vital para evitar a sobrecarga informacional e para garantir que o conhecimento gerado pela IA seja realmente útil e aplicável.

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Podemos inclusive criar assistentes IA (Agents) capazes de fazer filtros e análises que facilitem a curadoria humana sobre resultados gerados pela IA, sejam eles imagens, textos, planilhas, websites ou vídeos.

A curadoria, por depender de repertório acumulado ao longo do tempo, raciocínio analítico mas também sensibilidade, é a habilidade do século 21 mais difícil de ser ensinada.

É possível desenvolver bons curadores, mas o custo é alto e o tempo, longo. Por isso, identificar curadores dentro da organização e adaptar o processo de recrutamento e seleção a partir deste filtro é fundamental.

CORAGEM COMO CONTEXTO

Embora a curiosidade impulsione a busca por novas informações e entendimentos, é a coragem que permite a exploração dessas novas fronteiras. A coragem é necessária para enfrentar o medo do desconhecido, do fracasso e da mudança.

Dentro das organizações, ela se manifesta na disposição de fazer perguntas difíceis que podem revelar falhas, inconsistências ou oportunidades não exploradas.

Quando as informações são vastas e facilmente acessíveis, a curadoria se torna uma habilidade crítica.

Essas perguntas, que muitas vezes vão contra a corrente e podem ser desconfortáveis, são precisamente as que geram as inovações mais significativas. A coragem, portanto, sustenta a curiosidade e a curadoria, permitindo que elas se expressem plenamente e produzam resultados tangíveis.

As transformações de sucesso são aquelas que vêm acompanhadas de mudanças culturais profundas. Essas mudanças são complexas e exigem tempo, diálogo e uma reestruturação das dinâmicas de poder dentro das organizações.

Como Harrington Emerson observou, "o homem que compreende princípios pode escolher com sucesso seus próprios métodos. O homem que implementa métodos, ignorando princípios, estará certamente em apuros."

Em outras palavras, uma transformação bem-sucedida exige mais do que a simples adoção de novas tecnologias. Requer uma reavaliação fundamental de como trabalhamos.


SOBRE O(A) AUTOR(A)

Herman Bessler é fundador e CEO do Templo.cc. saiba mais