O que aconteceria se você deixasse uma IA fazer sua lista de compras?

Ao longo de uma semana, deixei a IA me dizer quais roupas comprar, que músicas ouvir e até fiz um teste de personalidade para escolher o batom ideal

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Elissaveta M. Brandon 8 minutos de leitura

Que sorte a nossa viver em uma era em que podemos simplesmente terceirizar nossas escolhas para a tecnologia, não é mesmo? Quer conselhos de beleza? Precisa de um novo sofá? Está procurando indicações de música? Deseja mudar de perfume? Comprar um vestido? A inteligência artificial pode te ajudar com tudo isso.

O mercado digital está tão saturado que podemos facilmente recorrer à IA para tomar decisões por nós. E foi exatamente o que decidi fazer.

Ao longo de uma semana, deixei a IA me dizer quais roupas eu deveria comprar, qual maquiagem usar e qual mesa de centro colocar na minha sala. Ouvi músicas recomendadas e até fiz um teste de personalidade para escolher o tom de batom ideal.

Crédito: melis82/ rawpixel/ Envato Elements

Encarei esse experimento com muita curiosidade, mas também com um pouco de ceticismo. Baixei vários aplicativos e visitei diversos sites.

Tirei prints da tela toda vez que a IA sugeria coisas tão absurdas que eu não conseguia conter o riso (o que ocorria com frequência) e também quando recomendava algo que eu realmente gostava (o que quase não acontecia). Compartilho aqui minhas conclusões.

Conclusão 1: a IA cria a ilusão de que realmente nos conhece

Uma das coisas que as marcas adoram enfatizar é a capacidade da IA de aprender nossas preferências ao longo do tempo e oferecer exatamente o que precisamos. Essas plataformas juram que, quanto mais tempo você passa com elas, melhor elas te conhecem.

Durante o experimento, perdi a conta de quantas vezes uma marca me disse que algo foi “selecionado especialmente para mim”.

A marca de fragrâncias sueca No Ordinary Scent transformou um conjunto de imagens que enviei para a plataforma em um perfume “cocriado” por mim. Já a Scent Lab (que faz velas aromáticas) me fez responder a um questionário de 60 segundos para criar três fragrâncias que correspondessem às minhas preferências em ordem de precisão, variando de 84% a 98%.

Não sei se esses perfumes me agradariam, já que acabei não comprando nenhum. No entanto, quando fiz o upload de três imagens de lugares que me trazem alegria, o site gerou tags absurdas como “curiosa” e “excêntrica”. Em seguida, criou um perfume com notas de pimenta rosa, âmbar e musgo – sem uma única nota de sal marinho para representar o oceano nas fotos.

De acordo com Meredith Broussard, professora associada da Universidade de Nova York e especialista em viés algorítmico, minha decepção foi resultado de uma falta de alinhamento entre minhas expectativas exageradas em relação à IA e seu verdadeiro potencial para o varejo.

“É completamente normal esperar que a inteligência artificial seja algo incrível, mas ao usá-la, percebemos que é apenas uma tecnologia comum”, afirma ela.

Durante o experimento, perdi a conta de quantas vezes uma marca me disse que algo foi “selecionado especialmente para mim”.

Vamos encarar a realidade: a inteligência artificial não é mágica, é matemática. “Uma matemática complexa e bela”, como explica Broussard. Embora seja tentador imaginar que uma máquina possa resolver todos os nossos problemas, a IA nada mais é do que um conjunto de processos estatísticos.

Ela requer uma enorme quantidade de dados alimentados em um computador, que então modela diferentes padrões matemáticos e os utiliza para prever qual o tom de batom agradará o consumidor.

Falando em batom: decidi procurar um, e uma busca no Google me levou ao site da Perfect Corp, que tem um teste de personalidade baseado em IA. Após tirar uma selfie rápida, o site sugeriu que, com base nos meus atributos faciais, eu seria uma pessoa cheia de energia, que gosta de interagir com os outros.

Naturalmente, isso significava que eu deveria comprar um batom vermelho marcante chamado “Ravishing” para “refletir a minha personalidade forte e vibrante”. Até gostei do batom, mas fiquei tão incomodada com a manipulação descarada que não me senti convencida a comprá-lo.

Conclusão 2: a IA não ajuda realmente a tomar decisões

Ficar paralisado ao ter que tomar decisões é um dos grandes problemas do século 21. E acreditamos que a solução para isso está na inteligência artificial. Mas será mesmo que ela consegue solucionar esse problema?

De acordo com um estudo recente da Oracle, a IA tem levado a um nível preocupante de sobrecarga de informações. Nada menos que 74% dos entrevistados afirmaram que o número de decisões que precisam tomar diariamente aumentou mais de 10 vezes nos últimos três anos.

a internet nos vendeu a ilusão de que a publicidade direcionada poderia nos oferecer exatamente o que desejamos.

Estima-se que o mercado de batons deve atingir US$ 12,5 bilhões até 2026. Isso significa que há milhões desses itens em depósitos, navios de carga e lojas de cosméticos. O mesmo vale para quase todas as categorias de produtos. Se a IA pode nos ajudar a reduzir as opções, por que não aproveitá-la?

Como alguém que detesta fazer compras, fiquei animada com a proposta da Shoptrue – uma espécie de Netflix da moda. O site utiliza IA para criar uma lista personalizada com base no seu gosto, para que você não precise passar horas procurando o casaco perfeito.

No entanto, minha experiência de compra foi semelhante a estar em um shopping, mas com uma dose extra de decepção cada vez que a IA recomendava uma peça que não se adequava bem ao meu corpo.

Por mais que a blusa parecesse linda na modelo, não ficaria bem em mim, já que o site não se preocupou em perguntar o meu tamanho, nem mesmo o meu tipo de corpo, antes de recomendar as peças. Em vez disso, perguntou como costumo me vestir, as marcas que uso, como eu descreveria meu estilo e as cores e estampas que gosto de usar.

Quando a empresa foi lançada, os fundadores disseram que o algoritmo acabaria aprendendo nossas preferências de tamanho e caimento ao longo do tempo, recomendando, assim, itens mais adequados. Talvez isso aconteça no futuro, mas quem tem tempo para esperar?

Conclusão 3: a IA nunca conhecerá você de verdade

Quando uma marca tenta nos convencer de que algo foi criado “exclusivamente para você”, nossos olhos brilham. Pesquisas mostram que as pessoas desejam ser reconhecidas como indivíduos únicos, e não como parte do rebanho.

Adoramos coisas personalizadas, pois nos fazem sentir especiais. Por isso, quando uma marca diz que algo foi feito especialmente para a gente, mordemos a isca. No entanto, na minha experiência, nunca é tão bom quanto se espera.

Ficar paralisado ao ter que tomar decisões é um dos grandes problemas do século 21. E acreditamos que a solução está na IA.

Esse problema vai além da IA. Broussard afirma que a internet nos vendeu a ilusão de que a publicidade direcionada poderia nos oferecer exatamente o que desejamos.

“A ideia de que, de alguma forma, as compras poderiam ser personalizadas para atender às nossas necessidades também não é totalmente verdadeira”, acrescenta. “Simplesmente nos é mostrado aquilo que temos mais probabilidade de comprar, com base no que pessoas com um perfil parecido compraram antes.”

Uma das primeiras plataformas que experimentei foi o Casawire. O serviço se apresenta como uma versão do Tinder, só que para móveis. As regras são semelhantes: deslizar para a esquerda se você gostar e para a direita se não gostar.

O problema é que isso é o contrário do Tinder, o que deixa tudo extremamente confuso – mesmo eu só tendo usado o aplicativo por uma semana antes de conhecer meu marido.

No primeiro dia em que usei o Casawire, odiei quase todos os móveis que apareceram para mim. “Não tem problema”, pensei, “o algoritmo ainda não me conhece”. No segundo dia, continuei detestando tudo o que vi. No terceiro... bem, você já deve imaginar como isso termina.

Conclusão 4: a IA acabou com a arte da descoberta

Durante o experimento, percebi que, embora a IA finja nos conhecer, na verdade está longe disso. Mas houve uma exceção: o mundo do streaming de música.

Resolvi deixar minha assinatura do Spotify de lado para testar o YouTube Music, principalmente porque queria começar do zero. Antes mesmo de ouvir uma única música na plataforma, senti que estava sendo reconhecida – provavelmente porque o YouTube pertence ao Google, e o Google já sabe tudo sobre mim.

Lá estavam, esperando por mim, o pop francês da minha adolescência e o folk dos meus anos recentes em Nova York. A música clássica e as trilhas sonoras que amo ouvir enquanto escrevo. Até mesmo os artistas que ouvia quando era jovem, com novos lançamentos que me trouxeram imensa alegria.

Mas então, o encanto se quebrou. Depois de escolher algo clássico, deixei no modo aleatório durante toda a noite. Em questão de um ou dois dias, minha página inicial estava completamente dominada por música clássica, e todo o resto havia desaparecido. A IA me colocou em um ciclo vicioso.

Uma das coisas que as marcas adoram enfatizar é a capacidade da IA de aprender nossas preferências.

Ao olhar para tudo o que ela me sugeriu – batom vermelho vibrante, perfume com notas de pimenta rosa, música clássica à exaustão –, vi partes de mim. Mas não consigo deixar de sentir como se tudo isso fosse só uma ilusão. Quantas outras pessoas foram apresentadas a versões semelhantes do meu batom?

Foi um experimento fracassado, mas, apesar dos resultados pouco impressionantes, há um certo valor e satisfação na experiência de trabalhar com a tecnologia para cocriar coisas. É a mesma alegria que sentimos quando ela nos ajuda a descobrir algo novo que realmente amamos, seja um perfume ou uma pessoa que nos faz sorrir em um aplicativo de namoro.

Mas, no final das contas, descobri que fazer compras com a IA é como ler o horóscopo: ficamos com as partes que gostamos e ignoramos o resto. Talvez eu seja uma humana comum, afinal. Queria me sentir especial, e a IA só me fez sentir como um mero conjunto de dados.


SOBRE A AUTORA

Elissaveta Brandon é colaboradora da Fast Company. saiba mais