OpenAI prometeu a Samantha, de “Her”, e entregou Gary, de “Veep”

A Apple Intelligence está prestes a se tornar uma assistente digital para usuários do iPhone, lembrando-os de coisas para que não precisem se preocupar

Créditos: Apple/ HBO/ Debora Pilati/ Unsplash

Joe Berkowitz 4 minutos de leitura

No primeiro dia da World Wide Developers Conference (WWDC), nesta segunda-feira (10 de junho), foi anunciada a tão aguardada chegada da inteligência artificial nos dispositivos da Apple.

Enquanto os recentes anúncios da OpenAI geraram comparações com a personagem principal do filme “Ela”, de 2013, a Apple Intelligence fez o público lembrar de outro: o Gary, da série “Veep”.

Para quem não conhece, o personagem (interpretado pelo ator Tony Hale) é o assessor pessoal da vice-presidente dos EUA, Selina Meyer (vivida por Julia Louis-Dreyfus), na série de sucesso da HBO. Embora Selina tenha um talento nato para a oratória e saiba como conquistar uma sala cheia, sem Gary, ela estaria em apuros.

O trabalho dele é antecipar todas as necessidades da vice-presidente, levando consigo desde protetor labial até aspirina e sempre pronto para soprar no ouvido dela os nomes e referências de qualquer pessoa de quem ela deveria se lembrar. Como ele mesmo diz em uma cena memorável: “eu sou seu calendário, seu Google, seu Wilson, a bola de vôlei [do filme ‘Náufrago’].”

Se a apresentação na WWDC for verdadeira, os iPhones estão prestes a se tornar muito mais parecidos com Gary. De acordo com a demonstração, quando os usuários receberem uma mensagem sobre uma reunião futura, a Apple Intelligence permitirá que eles perguntem à Siri se isso os fará se atrasar para a apresentação da sua filha, fazendo com que a assistente de voz consulte todos os e-mails, mensagens, convites e até padrões de tráfego – resumindo todos esses dados em uma resposta sucinta. Exatamente como Gary faz.

BASTA PERGUNTAR AO GARY

No restante da apresentação, a equipe da Apple ilustrou, através de diversos exemplos, como detalhes importantes podem facilmente escapar da nossa mente e como a nova tecnologia de IA facilita a busca nos nossos dados digitais para encontrá-los.

Onde estão aqueles ingressos para o show?

Onde você anotou as recomendações de livros do seu amigo?

Onde está aquela foto que você tirou experimentando um chapéu de cowboy na loja da Levi’s?

A resposta para tudo isso é: basta perguntar ao Gary – quer dizer, Siri! Com a Apple Intelligence, o aplicativo agora pode vasculhar instantaneamente o vasto histórico de dados dos usuários para lembrá-los de detalhes esquecidos.

O novo recurso é fruto de uma parceria com a OpenAI para usar o ChatGPT em parte dos serviços de inteligência artificial da Apple. Mas a OpenAI parece estar muito mais próxima de realizar a promessa um tanto assustadora de um futuro movido a IA.

Quando a empresa lançou o GPT-4o, no mês passado, apresentou um recurso de reconhecimento de voz, semelhante ao do filme “Ela”, de Spike Jonze. Semelhante até demais: a atriz Scarlett Johansson, que é a voz da IA Samantha, ameaçou processar a empresa por usar uma voz praticamente igual à dela no ChatGPT (a OpenAI trocou).

A maneira como o GPT-4o interage perfeitamente com dados visuais e de áudio – e faz isso de uma forma mais conversacional do que qualquer outra IA –, faz com que a interface sem teclado dos dispositivos do cenário futurista do filme pareça o caminho natural da tecnologia. E não em um futuro muito distante.

No filme "Ela" o personagem de Joaquin Phoenix se apaixona por uma IA (Crédito: Warner Bros.)

A forma como a Apple Intelligence lembra qual receita o usuário pensou em fazer na semana passada durante uma conversa antes de se distrair com o feed da rede social parece mais o trabalho de um assistente pessoal que sabe muito sobre você – e que está louco por um aumento.

Mas há uma linha tênue entre o útil e o indispensável. A possibilidade de acessar informações esquecidas sem precisar realmente procurá-las parece incrível, mas vem com algumas implicações. Esta nova Siri pode nos ajudar a lembrar das coisas na era da sobrecarga de informações, mas também pode inspirar mais perda de memória e, possivelmente, preguiça.

a OpenAI parece estar muito mais próxima de realizar a promessa um tanto assustadora de um futuro movido a IA.

Costumávamos memorizar diversos números de telefone antes dos celulares; agora, a maioria das pessoas nem sabe o número do próprio marido ou esposa. Costumávamos saber os aniversários dos nossos amigos próximos de cor, mas aí um aplicativo chamado Facebook mudou tudo.

Atualmente, ainda temos um incentivo para pelo menos tentar lembrar de detalhes vagos antes de desistir deles, ou para vasculhar a galeria para encontrar uma foto específica. Ter um Gary digital no ouvido nos tornará dependentes, e este é o primeiro passo para nos tornarmos tão desamparados sem ele quanto Selina Meyer seria.

Pelo menos ela é uma política de alto escalão com muito em jogo. E quanto a nós, qual é a nossa desculpa?


SOBRE O AUTOR

Joe Berkowitz é colunista de opinião da Fast Company. saiba mais