Roteiristas X robôs: Hollywood abraçou a automação muito antes da IA
Na era das franquias, tanto os espectadores quanto os estúdios preferem a fórmula à criatividade – exatamente o tipo de coisa que é mais fácil para a IA escrever
A cobertura da greve do Sindicato dos Roteiristas dos Estados Unidos (WGA, na sigla em inglês) está sendo feita principalmente pela grande imprensa, e não por pessoas que escrevem sobre filmes e televisão. Afinal, os críticos de cinema têm um envolvimento emocional, em vez de financeiro, com o produto final.
Como resultado, alguns aspectos que afetam tanto os espectadores quanto os profissionais são ignorados. Enquanto os roteiristas lutam por melhores condições, o público entende que uma tendência de produção computadorizada se instalou na era digital/ das franquias há cerca de duas décadas, corroendo a relação que esses profissionais costumavam ter com seu trabalho.
Os membros do WGA precisarão adotar uma posição firme em relação ao declínio contínuo dessa relação, já que, embora as habilidades de escrita da inteligência artificial, como o ChatGPT, ainda sejam um pouco fracas, os estúdios parecem estar satisfeitos com os efeitos especiais, digamos, estranhos que prejudicam a qualidade de seus produtos.
Basta ler qualquer crítica online do filme “Eternos” (2021). Todas comentam sobre a baixa qualidade dos efeitos, mas a Marvel Studios não se esforçou muito para melhorá-los nos dois anos seguintes. Quando “Thor: Amor e Trovão” (2022) e “Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania” (2023) receberam as mesmas reclamações, ela continuou a apostar que o público não se importaria, pelo menos no final de semana da estreia.
A verdade é que a Marvel e outros estúdios estão mais interessados em efeitos especiais baratos e que possam ser feitos rapidamente. Para isso, recorrem a empresas estrangeiras. E mesmo com inúmeras críticas, é improvável que voltem a contratar mão-de-obra local no curto prazo.
A Aliança dos Produtores de Cinema e Televisão (AMPTP), por sua vez, tem uma ideia diferente do sindicato sobre o papel dos roteiristas e está trabalhando ativamente para convencer a todos da sua visão.
Os CEOs de estúdios estão explorando várias tendências e trabalhando em conjunto para tornar os roteiristas obsoletos.
Na era da criação de conteúdo, a máxima de que filmes e programas de TV “começam com um roteiro” nem sempre significa que há um profissional de verdade envolvido. O conteúdo pode ser criado de várias maneiras, o que não necessariamente implica a presença de um humano à frente do projeto.
Os CEOs de estúdios estão explorando várias tendências e trabalhando em conjunto para tornar os roteiristas obsoletos – ou, pelo menos, reduzi-los a meros trabalhadores, criadores, contadores de histórias. Isso está implícito nessa concepção de conteúdo.
Na era da propriedade intelectual, o roteiro já foi concluído e eles detêm a PI, que é altamente protegida por lei e por contratos que garantem os direitos de produzir sequências, remakes e todo o tipo de coisa. O roteirista, sob este sistema, se torna o equivalente a uma máquina com semiconsciência, porque muito do trabalho já foi feito.
"MARVELIZAÇÃO" DA AUDIÊNCIA
Há uma razão pela qual a Marvel Studios envia seus roteiristas para um “campo de treinamento”. Depois que o trabalho é concluído, as empresas de efeitos visuais terceirizadas ficam responsáveis pelo resto do “roteiro”, da mesma forma que agora fazem grande parte da “atuação”, após o fim das filmagens.
Estamos a um passo de ver o ChatGPT e outros sistemas de inteligência artificial escrevendo roteiros. Os estúdios certamente já estão trabalhando nisso. E, se tiverem sucesso com um, não voltarão atrás.
Os roteiristas serão, então, considerados uma parte menor do processo e condenados à gig economy. Essa é a questão que a AMPTP parece mais relutante em negociar. Uma das únicas funções que restará para esses profissionais é escrever humor atual, um trabalho que provavelmente se tornará precarizado.
Embora os CEOs da AMPTP afirmem que quem mais vai sair perdendo com a greve são os espectadores, também dizem que têm um enorme estoque de conteúdo em mãos que lhes permitirá sobreviver à paralisação por um longo período.
Na era da propriedade intelectual, o roteiro já foi concluído e os estúdios detêm os direitos, altamente protegidos por contratos e leis.
A grande questão é que não há mais uma medida precisa de audiência nesta era pós-Nielsen (equivalente ao nosso Ibope). Os serviços de streaming não revelam números e os estúdios compram ingressos para aumentar a bilheteria. Assim, prejudicar os espectadores não é um grande problema. Afinal, ninguém sabe ao certo quantos são. Ou melhor, ninguém que sabe revela.
Enquanto os estúdios diminuem a importância dos roteiristas, também tornam mais difícil perder espectadores ao mudar o entendimento da palavra – uma pessoa qualquer com um mínimo de discernimento – para “fã”, alguém com uma sede enorme que precisa de mais e mais.
No mês passado, o CEO da Netflix, Ted Sarandos, disse a investidores que, em caso de greve, “provavelmente poderíamos atender nossos assinantes melhor do que a maioria”. Na “marvelização/ disneyficação” da audiência, os fãs têm uma infinidade de conteúdo para assistir, e as coisas que eles gostam são as mais fáceis para a inteligência artificial escrever.
PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
Cancelar programas de TV e filmes, muitas vezes por razões financeiras obscuras, é algo que CEOs como Sarandos não hesitam em fazer. Nesta era em que o número de assinantes oscila tanto, os executivos estão buscando prolongar a greve para que possam cancelar acordos que estavam prestes a ter que pagar, equilibrando assim suas finanças.
prejudicar os espectadores não é um grande problema. Afinal, ninguém sabe ao certo quantos são.
A verdade é que os estúdios nunca tiveram tanto poder quanto agora. Em décadas anteriores, as greves interrompiam rapidamente o fluxo de produtos e impediam qualquer coisa nova de ser lançada. Hoje já não é mais assim.
Nos próximos meses, a Paramount lançará filmes dos Transformers, das Tartarugas Ninja e de Patrulha Canina – o tipo de conteúdo bobo e repetitivo que se escreve sozinho e que o público não espera que seja muito bom.
Quando os roteiristas migraram para Hollywood nos anos 1930, no início da era do cinema falado, lutaram arduamente para criar sindicatos que os protegessem da exploração dos estúdios. No recente boom do streaming, no entanto, abandonaram os jornais e revistas, que já haviam começado a proletarizá-los.
Eles foram rebaixados de classe e, apesar do trabalho árduo de gerações anteriores, estão entrando em uma indústria que não oferece mais atrativos como royalties e contratos de longo prazo.
Muitos só foram contratados porque as plataformas de streaming precisavam deles para criar esse novo mundo de produtos sob demanda, reter os assinantes e manter as ações em alta. Este é outro paradoxo triste – os roteiristas agora podem ser descartados e substituídos por automatização para que as plataformas aumentem a receita.
Se a greve fracassar, acabará com o poder dos sindicatos em Hollywood por muito tempo. A AMPTP perceberá que estão vulneráveis em seu novo regime digital, que é todo streaming e parte IA.
O melhor recado que os grevistas poderiam dar a eles é: “Vocês só teriam lixo sem a gente”. Deveriam enfatizar isso nas redes sociais e para o público, em vez de apenas fazer piadas sobre seus patrões.
Mas, no fim das contas, é irônico que os roteiristas estejam em greve contra a Netflix, quando a própria empresa ofereceu um exemplo de como vencer ações trabalhistas. Embora não devam seguir o exemplo de Jimmy Hoffa em “O Irlandês”, eles precisarão ser durões.