Slop digital e o caos das músicas geradas por inteligência artificial

A avalanche de conteúdo sintético de baixa qualidade começa a dominar o espaço digital. Nem a música escapa

Créditos: Hannah Johnson/ Yelena Odintsova/ Pexels

Bruno Natal 5 minutos de leitura

A facilidade de criação de textos, fotos, áudios e vídeo com ferramentas de inteligência artificial está fazendo o volume de conteúdo subir exponencialmente. Isso cria novos desafios relacionados a autenticidade, qualidade, plágio e até à capacidade de se consumir tanta coisa. Como quase todas as áreas de trabalho, a produção musical já sente os efeitos dessas transformações.

O problema tem nome: AI slop, slop digital, ou simplesmente slop.  É assim que é chamada a proliferação de conteúdos de baixa qualidade gerados por IA. E essa avalanche de conteúdo sintético já começa a dominar o espaço digital.

Hoje, quase 50% do tráfego online é gerado por bots (sistemas automatizados utilizados para enviar spam, gerar interações falsas em posts de redes sociais, cometer fraudes, etc.).  Com o avanço da IA, espera-se que essa tendência se estenda também para a produção de conteúdo.

Recentemente, o fenômeno "Jesus Camarão" viralizou no Facebook. O meme consiste em imagens de Jesus no corpo de um camarão e foi criado por IA que, sem intervenção humana, gera imagens e conteúdos bizarros, publicados automaticamente e que acabaram atraindo atenção e engajamento massivo através da tentativa e erro. O objetivo é angariar curtidas, ampliar o número de seguidores de uma página, para depois tentar aplicar golpes nessa audiência.

Crédito: Reprodução/ Facebook

Em outro exemplo da confusão gerada por conteúdo de IA, o Google lançou uma funcionalidade de respostas automáticas geradas por IA como resultado das buscas e os resultados foram… surpreendentes.

Um usuário fez uma pergunta sobre como evitar que o queijo se soltasse da pizza e a IA, baseada em dados coletados da internet, sugeriu a ideia absurda de usar cola na receita. Embora cômico, o caso ilustra os riscos de confiar cegamente em sistemas automatizados para gerar conteúdo e soluções.

Crédito: Reprodução/ Redes Sociais

IA GENERATIVA NA MÚSICA

Como era de se esperar, o slop já chegou à música. As ferramentas digitais tem um papel importante na evolução da música. Tivemos o autotune alterando a voz na década de 1990. Hoje, plataformas como Spotify e YouTube utilizam IA nos seus algoritmos de recomendação e curadoria. A chegada da IA generativa e sua capacidade de "criar" músicas traz novos desafios, incluindo o excesso de conteúdo.

Em meio a uma quantidade absurda de conteúdos , será mais difícil para os artistas divulgarem suas obras e para os fãs, encontrá-las.

A novidade da IA é a capacidade de ferramentas de gerar músicas automaticamente. Serviços como Suno, Udio e FlowGPT lideram essa tendência, permitindo que músicas inteiras sejam geradas a partir de prompts de texto. Você descreve o que quer ouvir e o robô acessa sua base de dados com milhões de músicas gravadas por humanos para "criar" uma para você.

A primeira dificuldade é determinar a autenticidade e conseguir diferenciar um conteúdo criado por humanos de algo criado por IA. Há também o risco de plágio, já que essas ferramentas podem reproduzir inadvertidamente melodias ou letras protegidas por direitos autorais.

Isso não apenas cria problemas legais, mas também questiona a própria ética de se valorizar uma criação que não teve envolvimento humano direto.

CONTROVÉRSIAS

O impacto da IA na música pode ser percebido no último ano. O produtor Ghostwriter gerou a música "Heart on My Sleeve" e utilizou IA para emular as vozes de Drake e The Weeknd, o que confundiu muitos ouvintes que acreditaram se tratar de uma colaboração inédita entre os artistas.

O episódio gerou debates sobre os direitos autorais e os limites da criação artística por IA, especialmente após a música ser inscrita no Grammy.

Outro caso revelador é do artista FlowGPT, que adotou o nome da ferramenta como nome artístico e clonou as vozes de Bad Bunny e Justin Bieber para criar a música "NostalgIA". Apesar das críticas, o produtor defendeu a obra como uma nova forma de fazer música, adicionando complexidade na discussão sobre a IA na arte.

Apoiadores do candidato a presidência dos EUA Donald Trump geraram músicas falsa da Taylor Swift para enganar jovens eleitores sobre um apoio da cantora à campanha.

Essas músicas já estão entrando nas nossas vidas de maneiras imperceptíveis. A canção "BBL Drizzy", gerada por IA, foi incluída em playlists populares do Spotify, como Discover Weekly, sem nenhuma identificação de se tratar de conteúdo sintético (apesar da letra sobre supremacia branca num soul indicar que algo estava errado).

O produtor MetroBooming de rap, que sampleou essa faixa sem saber que se tratava de conteúdo sintético, é prova de como as fronteiras entre criações humanas e generativas estão se tornando nebulosas.

Casos como esses ilustram o maior problema causado pelo slop, uma simples questão de oferta e demanda. A quantidade supera a qualidade e a essência humana se perde num oceano sintético.

Em meio a uma quantidade absurda de conteúdos filtrados algoritmicamente, será mais difícil para os artistas divulgarem suas obras e para os fãs, encontrá-las. Ninguém ganha, apenas quem lucra com cliques de desavisados.

    O futuro da música depende de como a sociedade vai lidar com esses desafios. A regulamentação para proteger os direitos autorais e a integridade artística é urgente. Equilibrar a inovação tecnológica com a preservação da criatividade humana, enquanto as ferramentas de IA se tornam mais sofisticadas, é um dilema.

    Enquanto a linha entre criação original e automatizada se torna mais difícil de discernir, o valor da autenticidade artística pode ser ver ameaçado.  Ou pode se justo o contrário: com tanta porcaria, o que é bom vai se destacar naturalmente. Bom, pelo menos essa é a esperança.


    SOBRE O AUTOR

    Bruno Natal é apresentador do podcast Resumido. saiba mais