Jonathan Haidt defende políticas públicas contra o “emburrecimento da humanidade”
Em entrevista à Fast Company Brasil, autor de "A Geração Ansiosa" critica big techs, fala do papel do Brasil e diz esperar que “as redes sociais passem um dia a competir por segurança”

O Brasil pode liderar a transformação mundial das redes sociais. Essa é a avaliação de Jonathan Haidt, um dos psicólogos sociais mais influentes da atualidade e autor de "A Geração Ansiosa", livro que se tornou referência global ao analisar como o uso precoce de smartphones e redes sociais impacta negativamente o desenvolvimento infantojuvenil.
Em visita ao país esta semana, quando participou de eventos e encontrou especialistas, Haidt deu entrevista à Fast Company Brasil sobre o papel que o país pode exercer ao estabelecer políticas públicas e normas sociais que limitem a exposição de crianças às tecnologias digitais.
“Se o Brasil liderar, o mundo segue”, afirmou, ao comentar iniciativas locais como o banimento de celulares nas escolas e iniciativas de conscientização como o Movimento Desconecta.
Haidt aposta na combinação entre legislação e mudança cultural, baseada em normas sociais, como caminho para proteger as próximas gerações. Ele está lançando "The Amazing Generation", versão infantil de seu livro, que chega em dezembro nos EUA e terá tradução para o português pela Companhia das Letras.
Nesta entrevista, ele também critica o modelo de negócios das big techs, alerta sobre como a inteligência artificial tende a amplificar ainda mais os riscos, com a hiperpersonalização da pornografia, a criação de amigos artificiais e o avanço da desinformação e reforça a urgência de estabelecer limites já em 2025.
“Desde 2015, a humanidade está ficando mais estúpida. Não só os jovens, também os adultos. Não temos cinco anos para resolver. Tem que ser agora.”
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Fast Company Brasil – Seu livro impulsionou debates que levaram a leis de proibição de celulares em escolas brasileiras e fortaleceram movimentos como o Desconecta. Você imaginava esse impacto tão rápido e concreto?
Jonathan Haidt – De forma alguma. Sabia que o livro teria boa repercussão. Pais pelo mundo já me diziam “preciso disso agora” quando comentava sobre o assunto. Há um desespero global. Mas não imaginei que tantas mães iriam agir imediatamente. Foram elas que sentiram primeiro e mais profundamente esse afastamento dos filhos, sugados pelos dispositivos.
No Brasil, o Movimento Desconecta começou logo após uma das fundadoras ler o livro, ainda em inglês. Ela reuniu outras mães e começou a organizar ações.
Ao mesmo tempo, congressistas em estados brasileiros já lideravam o esforço para banir os celulares nas escolas, mesmo antes da publicação aqui. O resultado? Em menos de um ano, o Brasil conseguiu tirar os celulares das escolas. Isso é incrível!
FC Brasil – Você vê o Brasil como exemplo nesse movimento global?
Jonathan Haidt – Sem dúvida. O que o Brasil já fez com a proibição nas escolas é um exemplo mundial. Se der o próximo passo, que é estabelecer uma idade mínima para o uso das redes sociais, será uma das melhores contribuições que pode oferecer.
Em psicologia social, sabemos: quem rompe uma norma primeiro é importante, mas é quando o segundo e o terceiro seguem que ocorre a mudança real. A Austrália começou banindo o uso de redes sociais para menores de 16 anos. Se o Brasil, um país grande, se juntar, será um evento capaz de mudar o mundo. Se o Brasil liderar, o mundo segue.
FC Brasil – Depois do impacto de "A Geração Ansiosa", sobre o que será o seu próximo livro?
Jonathan Haidt – Acabamos de anunciar que vamos publicar uma versão infantil de "A Geração Ansiosa", um livro que se chamará "The Amazing Generation" [A geração incrível, em tradução livre]. O livro entra agora em pré-venda na Amazon. O lançamento nos EUA será em 30 de dezembro. Será lançado em português pela Companhia das Letras.

A ideia é dar às crianças uma noção do que aconteceu com os mais velhos e evitar que isso aconteça com elas. Muitos dos mais velhos se arrependem de ter começado a usar redes sociais tão cedo e entendem que se tornaram viciados.
A proposta é que, se os pais estiverem lendo o livro principal e as crianças estiverem lendo a versão infantil, haverá uma comunicação melhor e uma compreensão compartilhada, para que todos fiquem alinhados.
FC Brasil – Muitos acham que limitar o uso de celulares e redes sociais para adolescentes é algo utópico. Como o senhor responde?
Jonathan Haidt – Não estamos falando em banir celulares, mas em estabelecer uma nova norma social: não dar smartphones antes dos 14 anos. Se for preciso que a criança se comunique, dê um telefone simples ou um relógio conectado. No Brasil, esses aparelhos são menos comuns hoje, mas há 15 anos todos os pais usavam celulares básicos.
E quem diz que não dá para fazer está errado, pois já está acontecendo. Escolas sem celulares se espalham rápido, nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Austrália, Brasil…
Por quê? Porque os professores veem o efeito do celular no dia a dia. Eles sabem como o aparelho tornou a vida na sala de aula quase impossível. Você não consegue ensinar enquanto a criança vê o TikTok.
Essa mudança não é apenas possível, ela já é real.
FC Brasil – Para os pais que já deram smartphones aos filhos, especialmente pré-adolescentes, como agir?
Jonathan Haidt – Se seu filho tem menos de 12 anos, troque por um telefone básico. Se tem 15 ou 16, não defendo simplesmente tirar o aparelho, mas estabelecer limites é essencial. Metade dos adolescentes dos EUA diz que está online quase o tempo todo. Isso os impede de ter outras experiências e de estar plenamente presentes.
Regras simples ajudam muito: nada de telas no quarto depois das 21h ou 22h; nada de celular à mesa, em nenhuma refeição. Inclusive para os adultos. Ensine que há momentos para estar online e momentos para estar com as pessoas.
FC Brasil – Você tem filhos de 15 anos e um de 18 anos. Quais regras queria ter estabelecido em casa, sabendo o que sabe hoje?
Jonathan Haidt – A regra que realmente gostaria de ter adotado com meus filhos era nenhum tipo de tela no quarto. Nenhuma, nunca. Eu queria ter um computador na sala de estar, um desktop, onde eles pudessem acessar a internet, fazer trabalhos da escola, aprender a usar a tecnologia.
Queria ter deixado um computador e uma TV na sala comum, e só. Mas não fiz isso. Como eles cresceram durante parte da pandemia de Covid-19, acabaram passando tempo demais com o laptop no quarto.
FC Brasil – Em "A Geração Ansiosa", o foco da sua pesquisa são crianças e adolescentes. Nos últimos meses, você tem falado bastante sobre os impactos das telas na puberdade. Por que?
Jonathan Haidt – Porque a puberdade é quando desenvolvemos as funções executivas do cérebro, como planejar e executar tarefas. Se passamos a infância escolhendo estímulos rápidos e fáceis, seis horas por dia, por 10 anos, essas funções não se desenvolvem.

Paradoxalmente, a melhor maneira de preparar nossos filhos para a era digital é mantê-los longe da maioria dos produtos digitais até os 16 anos.
A puberdade é o momento-chave de desenvolvimento cerebral. O ideal seria evitar a exposição até os 18, mas sei que isso não é realista. Por isso, proponho: sem smartphone antes dos 14 e sem redes sociais antes dos 16. Não porque seja ideal, mas porque é o mínimo que podemos coletivamente fazer.
FC Brasil – A Austrália aprovou uma lei que proíbe o uso de redes sociais para menores de 16 anos, mas a forma como isso será feito ainda está sendo debatida. Como imagina que será na prática?
Jonathan Haidt – Protegemos nossas crianças de predadores no mundo real mas, assim que elas entram nas redes, essa proteção desaparece. Não falo só de Instagram, Snapchat ou TikTok, mas também de Discord, Twitch, até Roblox.
Qualquer plataforma que permita comunicação anônima entre estranhos não é para crianças, ponto. As empresas poderiam criar versões seguras, com verificação de identidade, onde crianças de 12 anos falem apenas com outras de 12 anos. Mas, hoje, não é isso que acontece.
FC Brasil – A verificação de idade é frequentemente criticada sob o argumento de que compromete a privacidade. O que pensa sobre isso?
Jonathan Haidt – Esse é um equívoco muito comum. As pessoas acham que você terá que dar muitas informações para o TikTok ou para a Meta. Não é assim. Se trata de uma verificação externa de idade, não é dar mais dados para as redes sociais.
Mas o resto das opções envolveria validadores externos. Por exemplo, na França há um banco de dados do governo que já é usado para benefícios e educação. Uma uma opção poderia ser fazer login na sua conta do governo.
Qualquer plataforma que permita comunicação anônima entre estranhos não é para crianças.
A Meta só precisa saber se a idade é verdadeira. E o validador externo responderia apenas “sim ou não”. O mais importante: esse validador, como a [empresa] Unico, no Brasil, ou o órgão governamental, não precisa armazenar de onde veio a solicitação.
Desde que eles não guardem algo como "o Pornhub perguntou sobre essa pessoa e eu disse sim", não há risco à privacidade. Se esse sistema for hackeado, nada será revelado. Não há ameaça à privacidade.
O problema é que, atualmente, as empresas não querem saber a idade real dos usuários. A lei precisa obrigá-las a querer saber. Uma vez que elas precisem saber, vão encontrar métodos muito melhores para fazer isso dentro de um ano.
FC Brasil – Enquanto discutimos leis para smartphones e redes sociais, a inteligência artificial avança. A IA pode ser tão danosa para as novas gerações quanto as redes sociais?
Jonathan Haidt – O nível de dano que vemos hoje não se compara ao que veremos em cinco anos. Isso porque os impactos atuais serão amplificados pela inteligência artificial. Pornografia personalizada será enviada diretamente a cada menino, com imagens que ele achar mais eróticas. Muitos já preferem pornografia a relações reais, e essa tendência deve crescer.
A desinformação e o extremismo também vão se intensificar, pois veremos vídeos de líderes políticos dizendo coisas horríveis com suas próprias vozes. Isso estará por toda parte, e não conseguiremos distinguir o que é verdadeiro.
Os problemas das redes sociais hoje serão 10 ou 100 vezes maiores em cinco anos. Não sei o número exato, mas certamente crescerão exponencialmente.
a melhor maneira de preparar nossos filhos para a era digital é mantê-los longe da maioria dos produtos digitais até os 16 anos
E isso nem inclui os chatbots. Mark Zuckerberg disse recentemente que há uma epidemia de solidão. Ele vê nisso um mercado. Acredita que os produtos de IA da Meta podem preencher essa lacuna. Basicamente, ele está dizendo: “tenho um produto que vai aliviar a dor causada pela catástrofe social que meu produto anterior criou”.
As redes sociais são parte do motivo pelo qual os jovens não passam mais tanto tempo juntos. Agora a solução proposta é que eles passem mais tempo com amigos artificiais. Assim como ocorre com a pornografia, os amigos falsos logo superarão os reais. Serão mais compreensivos, nunca insultarão, poderão ser incrivelmente engraçados, muito mais do que qualquer pessoa.
As empresas de tecnologia estão nos conduzindo a um futuro semelhante ao do filme "Matrix": todos deitados, tendo experiências por meio de uma tela.
Mas o desenvolvimento humano exige que as crianças enfrentem desafios milhões de vezes. Façam e refaçam tarefas difíceis e chatas. Com a IA, elas nunca mais precisarão fazer nada difícil, basta pedir que a tecnologia faça por elas.
FC Brasil – O que é preciso fazer para evitar esse futuro? E por que precisamos agir agora?
Jonathan Haidt – Precisamos estabelecer o princípio de que crianças não são adultos na internet. Durante toda a história da internet, bastou alguém dizer que tem 13 anos para ser tratado como adulto. E isso causou danos imensos, acredito que a duas gerações, não apenas a uma. Agora, a geração Alpha também está sendo prejudicada.
Duas gerações de crianças já foram afetadas pelo fato de que, na internet, elas são tratadas como adultos. Precisamos estabelecer esse princípio, assim como fizemos no mundo real.
No mundo real, temos regras: você precisa ter 16, 18 ou 21 anos para fazer certas coisas. Porque, até hoje, bastou dizer “tenho 13 anos” para ser tratado como adulto na internet.
Isso causou danos enormes a duas gerações e agora ameaça também a geração Alpha. Se não fizermos nada, será difícil: quatro gerações incapazes de pensar criticamente.
Desde 2015, a humanidade está ficando mais estúpida. Não só os jovens, também os adultos. Não temos cinco anos para resolver. Tem que ser agora.
FC Brasil – Você fez apresentações no Brasil esta semana. Já deu centenas de entrevistas. Quais questões que gostaria de responder que ainda não foram feitas?
Jonathan Haidt – Do ponto de vista das empresas, precisamos mudar os modelos de negócios de algumas companhias de tecnologia. Não são todas as grandes empresas de tecnologia, mas algumas baseiam seus negócios em viciar os usuários.
Empresas como Meta, TikTok e Snapchat precisam desesperadamente conquistar os usuários mais jovens. O modelo específico baseado em publicidade e atenção, quando aplicado a crianças, está causando danos a gerações no mundo todo. Isso precisa parar.
Algumas companhias de tecnologia já mudaram. O CEO do Pinterest, por exemplo, me procurou semanas depois que o livro foi publicado. Tivemos uma ótima conversa. Ele quis ser parte da solução e então eliminou todas as funções sociais do Pinterest para menores de 16 anos. Ou seja, não pode mandar mensagens, conversar com estranhos.

Ele fez isso e muitos falaram que o Pinterest perderia usuários. No começo, de fato, perderam. Mas, rapidamente, os números voltaram e cresceram. Porque muitas pessoas, na verdade, preferem uma plataforma segura a uma plataforma perigosa.
Nos anos 1960, as montadoras de automóveis lutaram contra todas as regulamentações de segurança. Elas não queriam cinto de segurança obrigatório, alegaram que isso deixaria o custo do carro maior.
Mas alguém, naquela época, disse: “um dia, os fabricantes de carros vão competir pela segurança. Eles vão anunciar que são os mais seguros e as pessoas vão escolher seus carros por isso”. E foi exatamente o que aconteceu.
Minha esperança é que, um dia, o mesmo aconteça com a indústria da tecnologia: que as redes sociais passem a competir pela segurança. Esse seria um deslocamento radical, uma mudança que poderia transformar o mundo. E é uma mudança que a própria indústria pode fazer acontecer.