Lives NPC expõem a mercantilização do sujeito
Nova tendência do TikTok escancara engrenagem quebrada da creator economy - e a sociedade da humilhação
Uma pessoa fantasiada e maquiada como um personagem caricato liga a câmera do celular e faz um streaming ao vivo no TikTok. No lugar das falas não roteirizadas e reações espontâneas das lives, esse usuário opta por falar apenas os mesmos bordões curtos com voz infantil.
Por horas, as frases são repetidas cada vez que alguém da audiência envia presentes online, dinheiro digital em forma de emojis. Bem-vindo ao mundo das lives NPC, estilos de vídeo que cresceu no último ano.
Depois do choque inicial, dá para perceber nesse formato as mesmas engrenagens enferrujadas do mercado de criação de conteúdo: a busca por dinheiro, o sonho de ser influenciador, a automatização do trabalho, a precarização algorítmica, as plataformas sem moderação e a autoexposição sem freios em troca de audiência.
NPC significa“non-playable characters” (personagens não jogáveis), personagens que populam o fundo dos games, programados apenas para dar certas informações em momentos específicos do jogo.
“Esse é o sintoma de uma era na qual as máquinas vão assumindo cada vez mais funções e a gente se torna cada vez mais igual a uma máquina”, diz André Alves, escritor, psicanalista, pesquisador de comportamento e cofundador da Float.
Para a pesquisadora em comunicação digital e autora do livro “De Blogueira a Influenciadora”, Issaaf Karhawi, as lives NPC escancaram a porta do porão das redes sociais. "Todo influenciador é mercadoria. As lives de NPC ilustram isso, elas materializam a mercantilização do sujeito e da subjetividade”, explica Issaaf.
LIVE DE CENTAVOS
Tudo começa e termina na grana. Os criadores topam ser “maquininhas automáticas de ganhar dinheiro” porque existe uma plataforma que paga por isso.
Os sistemas de recompensa nas transmissões ao vivo não são exclusivos do TikTok e funcionam para que a audiência possa pagar o criador de forma direta. Alguns centavos por vez, quem tiver mais audiência fatura. A promessa é de muito dinheiro.
No Google, a busca “quanto ganha a live de NPC no Brasil?” tem como resposta mais relevante o trecho destacado de uma reportagem que diz: “alguns influenciadores chegaram a faturar de R$ 30 mil a R$ 50 mil com lives NPC”.
A fonte do dado é uma matéria do "The New York Times" feita com a influenciadora norte-americana PinkyDoll, que viralizou ao fazer lives nesse formato.
Mas os casos de influenciadores que faturaram muito com essas lives são específicos, já que se tratava de figuras com presença e audiência fidelizada em outras redes, como o OnlyFans.
“No final, uma pequena parcela conseguiu faturar milhares de dólares. A base da pirâmide se humilhou nas lives de NPC para ganhar 60 centavos de dólar”, afirma Tiago Cavalcante, CEO da Inflr, agência que conecta marcas a influenciadores.
A expectativa de ficar rico faz parte do “sonho” de ser criador de conteúdo. Segundo pesquisa da Inflr, 75% dos jovens brasileiros querem ser influenciadores digitais. Na procura por ascensão social, o conteúdo digital parece um caminho com menos atrito para muitos conseguirem ganhar a voz e o espaço que desejam.
A realidade, no entanto, aponta para um mercado que recebe pouco e aceita trocar trabalho por visibilidade. De acordo com o Censo de Criadores de Conteúdo do Brasil, feito pela Squid em 2023, dois terços dos criadores de conteúdo brasileiros não recebem nem um salário mínimo por mês. Menos de 15% recebem entre R$ 1,3 mil e R$ 3 mil mensais.
Levantamento feito pela Brunch e a Youpix mostra que 67,1% dos creators brasileiros aceitaram fazer conteúdo em troca de brindes e produtos. A maioria deles fecha entre um e dois trabalhos por mês, mas 25% simplesmente não recebem pagamento para criar postagens e vídeos.
Na visão do diretor e cofundador da Squid, Felipe Oliva, mesmo aqueles influenciadores que são bem-sucedidos e fazem parte dos menos de 2% que recebem mais de R$ 15 mil por mês têm que trabalhar com a possibilidade de que o ganho pode ser intermitente.
“É preciso alinhar as expectativas e entender que, assim como em qualquer outro meio, quem ganha muito é exceção. É como no futebol: são poucos os jogadores que ganham o que o Neymar ganha”, afirma.
ALGO DE ERRADO NÃO ESTÁ CERTO
O julgamento não deveria recair sobre os que optam por fazer as lives NPC, mas sobre o sistema que permite que elas continuem a existir, opina Ana Paula Passarelli, cofundadora da Brunch, agência que oferece serviços para creators e influenciadores. “Em uma sociedade que está faminta, que precisa de dinheiro, a humilhação se torna lucrativa”, analisa.
A visualização se torna moeda de troca e a degradação humana, o ódio, a raiva, os gritos, dão mais audiência. Na opinião de Alves, há um outro nome para a “sociedade da humilhação”: viralismo. Em postagem para a Float, ele explica que a premissa do viralismo é que “qualquer exposição tem potencial de sucesso”, não importa o que esteja sendo exposto.
O criador de conteúdo é o elo fraco da corrente. “No viralismo, ele se torna um conglomerado de mídia em estado paranoico. Nunca pode desligar, precisa sustentar um nível básico de performance, competir para conquistar e reter a atenção da audiência”, explica Alves.
As plataformas pouco fazem para reduzir esse comportamento, já que são programadas para ampliar as visualizações e o tempo gasto dentro de seus sistemas. Na última semana, o TikTok reduziu a visibilidade das lives NPC, indicando que elas vão contra os termos de uso. “Casos como esse não vão deixar de existir. A cada semana, uma nova humilhação vai ser fonte de renda”, aposta Passarelli.
A pesquisadora Issaaf Karhawi lembra do “desafio do ovo” que viralizou no TikTok há três semanas, um pouco antes da explosão das lives NPC. O desafio consistia em mães e pais filmarem os filhos pequenos sendo surpreendidos com ovadas na testa.
“A pessoa acha que faz parte de algo engraçado, mas, se olhar com mais atenção, se vê a sujeição a uma plataforma na esperança de engajamento e audiência", diz Karhawi.
DIAS DE LUTA E DIAS DE LUTA
A conexão com a audiência, que dá força para a creator economy também traz seus custos, principalmente em saúde mental. De acordo com o levantamento da Brunch, 65,3% dos influenciadores brasileiros já receberam discurso de ódio de seus seguidores – sendo 34% injúrias racistas.
Cavalcante, da Inflr, diz já ter acompanhado alguns casos de influenciadores que entraram em depressão depois da fama. “Honestamente, é um preço que, se as pessoas soubessem, não pagariam”, alerta.
Há também o lado do algoritmo, que exige muito e dá pouco de volta – não muito diferente daqueles que dão os presentes nas lives NPC. “Existia esse canto da sereia de que a creator economy seria um espaço para as pessoas ganharem dinheiro fazendo o que amam. Mas, na realidade, eles são o proletariado do conteúdo”, diz Alves.
“O criador de conteúdo tem um chefe invisível, opaco e 'maquínico'. É um chefe que não dá feedback, só penaliza. Ele cobra aceleração e produção no ritmo das máquinas, não é no ritmo humano”, acrescenta Karhawi.
Nesse sentido, a creator economy também precariza o trabalho fantasiado de possibilidade empreendedora. Estimativa da Meta mostra que há 20 milhões de creators no Brasil. A expectativa é de que um bilhão de pessoas vão se identificar como creators nos próximos cinco anos. Quantos vão conseguir se beneficiar desse status?