Paradoxo publicitário: anúncios digitais se tornaram inimigos da criatividade
Um ecossistema cada vez mais digital está tirando dos publicitários a capacidade de inovar

A essência da publicidade – usar palavras e imagens para convencer pessoas a comprar algo ou agir de determinada forma – é quase tão antiga quanto a própria civilização. O primeiro registro conhecido data de cerca de cinco mil anos atrás, no Antigo Egito.
Desde então, o mundo da propaganda mudou muito. Mas uma coisa, até pouco tempo atrás, permanecia a mesma: era um trabalho profundamente intencional. O anunciante precisava pensar na linguagem, nas imagens, no público que queria alcançar e na melhor forma de fazer isso.
Não importava se o objetivo era promover uma oficina de tecelagem às margens do rio Nilo nos tempos dos faraós ou vender sabão em pó e cigarros na era do rádio e da TV – o processo sempre envolvia muita reflexão. O publicitário pensava em cada detalhe e, justamente por isso, tinha controle total sobre o resultado.
Minha maior crítica à publicidade digital é que ela, por natureza, retira do anunciante parte desse controle. Não apenas sobre onde o anúncio aparece ou quem o vê, mas também, com o avanço da inteligência artificial generativa e das criações automatizadas, até sobre a própria mensagem.
Com isso, transformamos a publicidade – antes um sistema cuidadosamente projetado, em que o criador sabia o papel de cada elemento – em uma grande caixa-preta. E dentro dessa caixa-preta, sobra pouco espaço para a criatividade.
A PERDA DA CRIATIVIDADE
Quando pensamos em publicidade, geralmente pensamos na mensagem. E é verdade: algumas das campanhas mais marcantes da história se destacaram pelo uso de trocadilhos inteligentes ou de gatilhos psicológicos sutis que fixavam uma ideia na mente das pessoas.
O “Pepsi Challenge” (Desafio Pepsi), por exemplo, começou como uma série de testes cegos de degustação e se transformou em uma campanha ousada, que afirmava com segurança que a Pepsi era o refrigerante preferido do público.

A estratégia não apenas provocou sua principal rival, a Coca-Cola, como também fez os consumidores perceberem diferenças entre dois produtos que pareciam idênticos.
Não digo isso porque acredito que toda publicidade digital – na qual boa parte das decisões é terceirizada, especialmente para plataformas e algoritmos – seja ruim. Mas porque acredito que as campanhas mais eficazes e memoráveis nascem de um processo intencional e criativo.
O problema é que esse novo modelo de publicidade, por natureza, nos impede de usar essa criatividade em todas as etapas do processo, da concepção da ideia até a entrega final.
ENFRENTANDO AS CAIXAS PRETAS
No passado, os contratos publicitários eram fechados diretamente entre empresas: o anunciante pagava por um espaço de destaque, por um período determinado. Tudo era negociado de forma manual, clara e compreensível.
Hoje, a publicidade digital depende de sistemas que o anunciante não controla – e, muitas vezes, nem compreende. Nos casos em que há um forte uso de inteligência artificial, nem mesmo os desenvolvedores sabem exatamente o que determina cada decisão de segmentação ou posicionamento.
Essa falta de clareza também abre espaço para que plataformas e redes de anúncios ajam de forma contrária aos interesses dos anunciantes – seja ocultando dados que poderiam melhorar o desempenho das campanhas, seja falhando em protegê-los contra fraudes de cliques.

É verdade que os anúncios digitais permitem ampliar o alcance e atingir públicos com mais precisão e eficiência, além de reduzir custos. Mas o preço disso é alto: a experiência online dos usuários piora, as preocupações com privacidade aumentam e os anunciantes acabam sem saber o que realmente acontece com seus investimentos.
Mas talvez o maior prejuízo – para quem ainda se importa com o lado criativo e intelectual da publicidade – seja o fato de que os anúncios digitais raramente produzem algo verdadeiramente memorável, algo que deixe uma marca cultural.
A criatividade é como um músculo: se você não a exercita – ou não precisa exercitá-la –, ela enfraquece. E é exatamente isso o que vem acontecendo com a publicidade hoje.