Telas em toda parte: vendidas como comodidade, povoadas por publicidade
Em vez de sumirem no plano de fundo, essas telas fazem o contrário: disputam nossa atenção com anúncios não desejados

Por décadas, empresas de tecnologia vêm prometendo um futuro digno de Star Trek. Em vez de ficarmos confinados a celulares e computadores, nossas vidas digitais se estenderiam a uma rede de telas ao nosso redor – de TVs conectadas e geladeiras inteligentes a telas na cozinha e nos painéis de carros.
As big techs chamaram isso de “computação ambiente” ou “computação ubíqua” e exaltaram a ideia de que a tecnologia desapareceria no cotidiano para que pudéssemos focar no mundo real.
O que temos, na prática, é o seguinte:
- As geladeiras inteligentes da Samsung começaram a exibir anúncios em suas telas.
- Os smart displays Echo Show, da Amazon, agora mostram propagandas impossíveis de desativar, mesmo pagando mensalidade pela versão premium Alexa+.
- Os dispositivos Fire TV, também da Amazon, apresentam “fundos de tela patrocinados” se você os deixa ociosos por alguns minutos.
- A Tesla passou a promover o filme “Tron: Ares” diretamente nos painéis de seus carros.
As empresas acertaram na parte “ambiente”: estamos cercados por telas, mas sobre as quais não temos controle. Em vez de sumirem no plano de fundo, essas telas fazem o contrário: disputam nossa atenção com anúncios que engordam o lucro das fabricantes.
DAS TELAS “LIMPAS” À PUBLICIDADE
A computação ambiente nasceu em um cenário mais idealista, no fim dos anos 1980, no centro de pesquisas Palo Alto Research Center, da Xerox.
Mark Weiser, então chefe do laboratório de ciência da computação do centro de pesquisas, usou o termo “computação ubíqua” para descrever um conjunto de telas de vários tamanhos que funcionariam juntas para ajudar nas tarefas do dia a dia.
“Máquinas que se encaixam no ambiente humano, em vez de forçar os humanos a entrar no delas, tornarão o uso do computador tão revigorante quanto uma caminhada na floresta”, escreveu.
As empresas passaram a ressuscitar a ideia duas décadas depois, quando processadores leves, telas baratas e conectividade à internet tornaram a computação ambiente mais viável.
Em 2013, por exemplo, a Microsoft inaugurou um “Envisioning Center” para testar conceitos do tipo, como telas sensíveis ao toque do chão ao teto em cozinhas e áreas comuns. A Cisco demonstrou o conceito “Second Screen 2.0”, com telas que se misturavam às paredes e exibiam informações personalizadas quando necessário.
A Samsung foi ainda mais ousada: lançou um vídeo conceitual intitulado “Display Centric World”, repleto de telas dobráveis, enroláveis e transparentes. “A tecnologia começa com um amor por você”, dizia o vídeo, mostrando telas envolvendo xícaras de café, surgindo da mesa de cabeceira, iluminando vidros de carros e cobrindo paredes de salas de aula.
O termo “computação ambiente” ganhou força alguns anos depois. Em 2017, o colunista de tecnologia Walt Mossberg o usou para definir a tecnologia que “sai do seu caminho”, e logo Google e Amazon abraçaram o conceito.
O que era imaginação virou realidade. Mas havia um problema: o ideal utópico não combinava com o modelo de negócios dessas empresas.
TELAS BARATAS, MAS SEM CONTROLE
Não basta vender o dispositivo, seja ele uma caixa de som inteligente, uma TV conectada ou uma geladeira com tela na porta. A expectativa das big techs é que esses aparelhos continuem gerando receita, por meio de anúncios ou assinaturas. Em alguns casos, elas vendem os produtos por preços incrivelmente baixos, esperando recuperar o investimento mais tarde.
Ao mesmo tempo, o software que opera essas telas baratas oferece muito menos controle do que um computador ou até um celular. São terminais cada vez mais limitados, com sistemas operacionais que rodam na nuvem – o que significa que há poucas alternativas quando o software se volta contra você.

Enquanto no computador é possível trocar o buscador por um que não lote a tela de anúncios, nada disso vale quando sua “tela inteligente” passa a exibir publicidade ou quando a assistente de voz tenta empurrar produtos quando responde a um comando.
O hardware também não é simples de substituir. Você pode até se desfazer de um único dispositivo. Mas e se tiver enchido a casa deles? Se tiver integrado tudo à automação residencial? E quando TVs, geladeiras e painéis de carro se tornarem outdoors digitais?
Nesse contexto, os vídeos futuristas da Samsung e da Microsoft do início dos anos 2010 ganham outro sabor. As empresas venderam uma utopia digital alimentada por telas onipresentes, sem nunca explicar como essa festa seria paga.
Agora que estamos cercados pela tecnologia que possibilita esse futuro, a conta finalmente chegou.