No backstage de Madonna, uma ode à ciência e à tecnologia
A tecnologia por trás do show de Madonna em Copacabana - que teve playback da banda, mas não de sua voz
O show histórico de Madonna em Copacabana na noite do último sábado (4 de maio) prova que arte, tecnologia e trabalho árduo andam juntos. No palco, referências de moda, teatro, cinema, política, comportamento e cultura underground.
Na plateia, o público de 1,6 milhão de pessoas cantou, dançou, gritou, chorou, em uma apresentação sem precedentes.
Nos bastidores, a equipe de produção driblou a temperatura, a umidade, a areia e o tempo curto para entregar uma experiência inesquecível, digna de celebrar os 40 anos de carreira da rainha do pop.
“Nunca vi algo assim”, diz Alex Soto, engenheiro de aplicações para América Latina da L-Acoustics, empresa responsável pela infraestrutura de som da turnê “Celebration”. A companhia já forneceu sistemas de som para festivais como Tomorrowland e Coachella, além de estar nos palcos de artistas como David Byrne e Billy Eilish.
Soto tem mais de duas décadas de experiência com música ao vivo. Mas estava surpreso e extasiado com a quantidade de fãs que não paravam de chegar.
Desde o meio da semana, fãs da cantora peregrinaram para a capital fluminense. Na quinta-feira, quando Madonna inesperadamente apareceu para fazer uma passagem de som, boa parte da grade mais próxima ao palco já estava tomada.
No dia do show, dos bastidores, o que se via às 18h eram pessoas em todos os cantos, inclusive no mar, com barcos e balsas. Nos prédios em volta do palco, montado na frente do Copacabana Palace, as janelas também estavam lotadas.
O que se ouvia era o vrá, barulho dos leques batendo, um símbolo da cultura das drag queens. O público animado motivou a equipe de som a elevar o nível – e aumentar ainda mais o volume.
"Se eles ficaram em pé, nesse calor, podem gritar e aproveitar o quanto quiserem. Temos que ser mais altos do que os brasileiros", brincou Burton Ishmael, o “maestro” responsável por toda a engenharia de áudio do concerto.
UM NOVO SOM ANTIGO
Madonna não passa por um show sem polêmicas. A da vez foi sobre o uso de playback. Muitos reclamaram que o show não tinha uma banda ao vivo. Mas essa é a regra na turnê “Celebration”.
Ishmael controla a mesa de som principal, o coração da operação. Por ele passam as mixagens, a voz da cantora e a trilha de fundo das canções. É sobre ele que a responsabilidade da entrega do som recai. E é ele quem responde ao altíssimo padrão de exigência da rainha do pop.
O engenheiro de som trabalhava com Post Malone quando chamou a atenção de Madonna. A cantora o convidou pessoalmente para participar da montagem da nova turnê, há dois anos. Logo nos ensaios iniciais, a artista disse, sem rodeios: “quero que todos que foram ao show tenham a melhor experiência do mundo. Até quem não puder ver o palco, todos precisam sentir a música”.
Como resposta, Ishmael mergulhou na obra de Madonna e entendeu os detalhes da gravação dos primeiros hits da cantora, como “Holliday”. O desafio era atualizar as músicas sem que elas perdessem o “frescor”.
“Trouxemos 40 anos dessas criações para hoje em dia. É quase como transcender o tempo: as pessoas estão escutando agora, em formatos atuais, músicas icônicas dos anos 80 e 90”, explicou Ishmael.
Para tanto, foi necessário usar a trilha de música – o famoso playback de áudio. Madonna cantou ao vivo em todas as canções, mas o fundo foi mixado. O áudio do microfone dela estava aberto durante o show e Ishmael se certificou de que ele ficasse na altura certa, como se a apresentação fosse gravada para um álbum.
O sistema de som conectado ao microfone permitia distorções de voz ao vivo e mudanças de afinação, tudo para que as canções estivessem o mais próximas possível das originais.
“Não é apenas um show, é uma turnê de memória da Madonna”, comentou Ishmael. De fato, no palco se viu uma mistura de apresentação teatral, de dança e música. Não era apenas uma artista fazendo performance de seus hits, mas uma pessoa narrando sua história.
WE GO HARD OR WE GO HOME
O desafio de ser “mais alto que os brasileiros” exigiu tecnologia de ponta. Foram oito pares de torres de som espalhadas até a praia do Leme, com mais de 205 speakers, 81 amplificadores e dois processadores acústicos.
Havia alto falantes distribuídos por todas as áreas do palco – até mesmo embaixo dele. Cada aparelho era conectado num sistema inteligente, preparado pela L-Acoustics, num ecossistema de software.
A companhia francesa é uma das mais procuradas quando o assunto é experiência imersiva de áudio. Além de criar ambientes para concertos gigantes, também tem expertise com o sistema acústico de óperas e teatros.
O designer de som do show, Andy Fitton, construiu um modelo 3D da praia de Copacabana, que usou para planejar a distribuição de alto falantes, tendo como objetivo a equidade: todos deveriam sentir e escutar o som de maneira igual.
Em três monitores e um computador, a equipe de design de som visualiza qual altura o áudio está nos dispositivos, além de entender quais necessidades elétricas e de re-calibração. Consegue ver também se algum sai do ar.
MUITO CALOR
O Rio de Janeiro passou a semana anterior ao show no clima de Madonna. Músicas da cantora eram tocadas nos bares, mesmo em lugares tradicionais de samba. A rainha do pop estampava camisetas, bandeiras, faixas, copos, quadros e leques vendidos por ambulantes.
A equipe de som, que chegou no Rio com 10 dias de antecedência, encarou a “madonna-mania” com bom humor. O que tirou o sono da produção foi outro clima: o de verão no meio do outono. No sábado, os termômetros em Copacabana ultrapassaram 35ºC.
A situação se repetiu a semana inteira. O fenômeno foi resultado de uma onda de calor que invadiu parte do Brasil desde o final de abril. Um cenário bastante diferente do que a equipe havia planejado quando pensou em um show em maio.
Variáveis como umidade, pressão e temperatura alteram a resistência do ar, por isso são monitoradas de perto pela equipe de som, "A gente está controlando a física", disse Soto – não por acaso, a L-Acoustics foi fundada por um doutor em física quântica, em 1984.
O desenho acústico de um espaço muda com a temperatura, pois as ondas sonoras se dissipam mais rápido no calor e mais devagar no frio. Ou seja, o som tende a dispersar no calor, o que pode ser um grande problema para um concerto aberto para milhões de pessoas.
A plataforma da L-Acoustics monitorou a temperatura todos os dias, em momentos variados. A equipe de design e engenharia de áudio redobrou a atenção para os números do final da tarde até as 22h, que seria quando o show começaria.
A umidade da praia também foi um desafio. As mínimas gotas de água no ar influenciam em como as ondas sonoras se dissipam e podem “abafar” o áudio. Mais uma lição da física. No sábado, a umidade relativa do ar variou entre 60% e 87%.
Logo após o sol se pôr, uma fina névoa subiu, o que ajudou a aliviar o calor, mas também condensou nos aparelhos distribuídos nos bastidores. Em certos momentos da noite, as superfícies das caixas que guardavam os fios e instrumentos musicais estavam molhadas. O chão do palco também ficou úmido e escorregadio – a real razão para o atraso de meia hora de Madonna.
MUSIC MAKE THE PEOPLE COME TOGETHER
O objetivo final da equipe foi tornar o som igual em todos os ambientes, da frente do palco até a última pessoa no fundo. E o público vibrou, reagiu e se emocionou.
Durante a apresentação de "Live to Tell", música em que Madonna homenageia aqueles que morreram em decorrência de complicações da Aids, imagens de Cazuza, Betinho e Renato Russo apareceram nos telões. A audiência respondeu com palmas e lágrimas. No auge dos seus 65 anos, Madonna falou sobre maturidade, sobre sexo, sobre tabus. Trouxe para as telas e para a plateia as vozes daqueles que sempre defendeu.
Outro momento que provocou forte reação do público foi a versão de “Music” ao som de ritmistas comandados pelo músico Pretinho da Serrinha. Foi quando Pabllo Vittar fez uma aparição para dançar e performar ao lado de Madonna. No telão, imagens de brasileiros notáveis como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Marielle Franco e Paulo Freire.
Estima-se que a passagem da cantora tenha movimentado R$ 300 milhões na cidade do Rio de Janeiro. Movimentou também mais de 200 pessoas da equipe de produção interna da turnê. Isso sem contar as centenas da equipe brasileira.
No final, Madonna fez o que tem feito há 40 anos: agitou a cabeça dos brasileiros e deixou sua marca artística revolucionária.
A repórter Camila de Lira viajou ao Rio para acompanhar o show de Madonna a convite da L-Acoustics
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