O ceticismo de Tim O’Reilly, que ajudou a dar vida a Web 1.0 e 2.0, em relação à Web3

Crédito: Fast Company Brasil

Mark Sullivan 11 minutos de leitura

Tim O’Reilly é responsável por introduzir conversas e conceitos na indústria de tecnologia há mais de três décadas. A empresa que fundou, a O’Reilly Media, colocou no ar o primeiro portal da internet, em 1993, e continua contribuindo para a indústria, publicando livros, oferecendo cursos on-line e realizando eventos virtuais.

Ele viu de perto as primeiras grandes pontocom nascerem, crescerem e quebrarem no final dos anos 1990. A O’Reilly Media fez parte do surgimento de um novo grupo de empresas de internet que se beneficiaram das lições aprendidas com Web 1.0. Na verdade, foi ele quem popularizou o termo atribuído a essa nova onda de empresas do início dos anos 2000: a Web 2.0.

Vinte anos depois, uma nova transformação se aproxima e entusiastas da tecnologia prometem uma mudança estrutural mais radical do que qualquer outra que já tenhamos visto. As empresas da “Web3” se distanciam do poder centralizado das plataformas Big Tech e propõem o desenvolvimento de aplicativos que armazenam dados e transações via blockchain. O movimento Web3 parece ser uma resposta ao crescente desconforto do público em confiar dados e dinheiro a poderosas plataformas com interesses financeiros e políticos próprios.

Mas essa nova onda ainda tem um longo caminho pela frente antes de conseguir provar que é capaz de produzir tecnologia com a funcionalidade, confiabilidade, segurança e escala necessárias para transformar a internet que temos hoje. O’Reilly é um dos poucos influenciadores que começaram a levantar dúvidas sobre as chances de ela conseguir fazer isso. Afinal, ele já viu esse filme antes – duas vezes.

Muitos dos fundamentos filosóficos da Web3 foram adotados no início da web comercial e, novamente, na Web 2.0. Por que a indústria de tecnologia não conseguiu entregar o conteúdo, comércio e comunidade que já estavam presentes nesses primeiros ideais?

Acredito que por duas razões: uma delas é que nossa economia favorece a centralização. Por que será que grandes empresas dominam todos os setores e continuamos a consumir seus produtos? Nossa [abordagem] antitruste é: “Existe outro gigante para competir?” (ele se refere ao “padrão de bem-estar do consumidor”, que avalia as fusões com base em seu efeito sobre os preços ao consumidor). Empresas gigantes competem com produtores menores e menos eficientes e pensamos nisso como algo bom. É ótimo quando a economia se torna mais eficiente. Mas a parte ruim da eficiência é que ela se dá através do menor denominador comum. Então, se queremos uma economia diversificada, temos que valorizar algo além da pura eficiência econômica.

A segunda razão é o que Clay Christensen chamou de Lei da Conservação da Atração de Lucros. Acompanhei de perto o monopólio da IBM sendo substituído pelo computador pessoal, que gradativamente chegava às casas de todo mundo. Isso foi uma descentralização. O hardware tornou-se um produto de consumo. Rapidamente, Bill Gates descobriu como monopolizá-lo, da mesma forma que a IBM o fez. O software tornou-se o meio de conquistar poder. Entramos então em um novo período de consolidação.

Logo surgiu a internet, a web e o software de código aberto. As APIs de software estão se tornando padronizadas e temos acesso a elas. Em outras palavras, uma nova onda de descentralização surgiu, e foi aí que pensei: “Espere, esse padrão vai se repetir.” E a imaginar o que virá a seguir.

Já tinha visto esse padrão se repetir com tanta frequência que, quando todo mundo começou a falar sobre descentralização e criptomoeda, comecei a prestar atenção em onde estava a centralização. Conseguimos vê-la por toda parte. Houve centralização da mineração de bitcoin. Basta que alguém descubra como centralizá-lo e como obter lucros enormes, e logo terá ótimas avaliações de mercado. Preste atenção ao que fazemos e não ao que dizemos, este é o mercado que queremos.

Mesmo se tratando de criptomoeda descentralizada, quem recompensamos? As grandes e centralizadas plataformas de negociação de criptomoedas. Premiamos aqueles que inicialmente cunharam todas as moedas criptográficas. No fim das contas, acabamos em um esquema de pirâmide, onde quem está no topo são aqueles que construíram o mercado de NFT (tokens não fungíveis). Há histórias de pessoas que conseguiram vender NFTs por altos valores, mas as grandes recompensas foram, sobretudo, para quem conseguiu centralizar o novo mercado.

Uma das diferenças entre o surgimento da Web 2.0 e o da Web3 é que agora há muito mais dinheiro de capital de risco sendo injetado. Isso também pode empurrar os modelos para a centralização, já que esses investidores procuram escala?

A Web 2.0 não foi um número de versão, foi o ressurgimento da internet após o colapso das pontocom. Logo, não acredito que poderemos chamar a Web3 de “Web3” até que haja o colapso das criptomoedas. Só então poderemos ver com clareza o que restou.

Em 1999, não conseguíamos distinguir quem teria sucesso, se a Pets.com ou a Flooz, de Whoopi Goldberg, já que ambas tinham um enorme valor de mercado. Esse é um ponto-chave sobre o qual continuo tentando alertar. É por isso que desconfio da Web3. Tudo o que se fala é sobre avaliações. E avaliação tem muito pouco a ver com os impactos econômicos reais. Havia um número enorme de empresas com ótimas avaliações (na época – hoje, seriam avaliações ruins) que não eram negócios de verdade. Assim que o capital acabou, elas despareceram.

Ainda estamos esperando para ver o que vai acontecer. Alguns modelos continuarão presentes porque se trata de negócios reais. Acredito que, em dois ou três anos, seremos capazes de dizer: “Isto é a Web3 de verdade” – se é que se tornará algo de fato.

Quando você diz que avaliações não revelam o impacto no mercado, está dizendo que ou olhamos para essas empresas de maneira especulativa ou podemos observar se oferecem valor real para um cliente?

É exatamente isso. E se as pessoas estão de fato entendendo essa diferença. Mas, de novo, é muito difícil saber, uma vez que há poucos registros disso. Há apenas informações sobre as avaliações. Quando observamos o mercado de NFTs, por exemplo, vemos que o número de pessoas envolvidas nas negociações está na casa das centenas de milhares, não milhões; e aí comparamos com a rapidez com que o Google indexou um trilhão de páginas, uma enorme quantidade de conteúdo sendo colocado no ar.

“A ECONOMIA DE APOSTAS SE DÁ ATRAVÉS DA ESPECULAÇÃO SOBRE O VALOR, OU O QUANTO OUTRAS PESSOAS PENSAM QUE VALE.”

Existem algumas métricas sendo publicadas. Quando ouço que a Ripple (que transfere fundos para instituições financeiras de todo o mundo) teve [uma receita de] U$ 10 bilhões em transações internacionais no ano passado, penso: “Por que não estamos publicando sobre esse tipo de estatística para que possamos entender se isso é real ou não?” Não estamos discutindo isso de forma que realmente reflita o impacto do que chamo de “economia operacional”.

Gosto de contrastar a “economia de apostas” e a “economia operacional”, aquela em que pessoas pagam por bens e serviços. A economia de apostas se dá através da especulação sobre o valor, ou o quanto outras pessoas pensam que vale. É, de certa forma, um concurso de beleza keynesiano. Um concurso onde não se escolhe a competidora mais bonita, mas a que outras pessoas vão considerar a mais bonita, ao mesmo tempo em que outros tentam adivinhar qual delas você vai coroar.

COMEÇANDO DE NOVO

As pessoas começam a se perguntar se realmente precisamos de uma infraestrutura radicalmente nova para termos uma internet mais igualitária e justa. Qual é a sua opinião?

Há descentralizações muito mais interessantes do que criptomoedas. A maior delas, para mim, é o potencial de descentralização de big data e de IA. O Google costumava ser o detentor dessas tecnologias. Tudo vinha dele. Agora elas estão sendo integradas em outros modelos, como o BERT (modelo de linguagem natural inovador do Google), que tem código aberto. Já o GPT-3 (outro modelo de linguagem natural) não é de código aberto, mas é grande o suficiente para que se possa requerer informações [via] API. É bastante possível que haja avanços em algum modelo da próxima geração que lhe dê uma vantagem centralizada contínua. Mas o que estou vendo é que os modelos de código aberto já lançados, e que podem ser replicados, são bons o suficiente para o treinamento de mercados verticais.

O machine learning está por toda parte e vem causando impacto real. Se eu estiver certo, terá o potencial de desestabilizar um pouco o poder das empresas de big data. O aprendizado de máquina permite a busca por marcas individuais de forma descentralizada. Assim, logo veremos carrinhos de compras e serviços de envio ou armazenamento descentralizados. De repente, teremos uma concorrente da Amazon cada vez mais real. É algo que pode mudar o mercado.

Falamos sobre a descentralização dos recursos de IA e não mencionamos a palavra blockchain. Isso tudo está acontecendo independentemente dessa tecnologia?

Exatamente! Os padrões de centralização e descentralização estão por toda parte. E a ideia de que isso só poderá acontecer através do blockchain não é verdadeira. Acredito que a Web3 contará com elementos realmente interessantes, mas não saberemos quais até que toda a comoção criada por esse financiamento indiscriminado acabe. Então saberemos o que ficou. Não é como se precisássemos fugir dessas tecnologias, mas não devemos acreditar no hype.

Você falou sobre como as estruturas descentralizadas da Web3 precisarão desenvolver interfaces robustas para o mundo real, com sistemas legais e economia operacional. Mas parece que algumas das pessoas que estão criando essas estruturas são avessas aos sistemas centralizados que usamos hoje. E talvez vice-versa. Como será?

Pessoalmente, nunca fui muito simpático a esses pontos de vista. Meu envolvimento com software de código aberto veio de observar o mundo lá fora. Richard Stallman dizia que softwares de código fechado eram os inimigos. O que fizemos foi criar uma alternativa, que, em princípio, seria o sistema GNU, e acabou virando o Linux. Outros desenvolvedores fizeram o GIMP, uma versão gratuita do Adobe [Photoshop]. Enquanto isso, há um monte de gente com o mesmo pensamento: “Estamos apenas criando coisas legais e disponibilizando para qualquer um”.

HOJE SEU NOTEBOOK É CADA VEZ MENOS SEU E CADA VEZ MAIS O NOTEBOOK DA APPLE OU DA MICROSOFT.

Vejo o que resultou desse movimento – temos a World Wide Web, que é de domínio público. Temos a implementação TCP/IP original que Bill Joy escreveu como parte do Berkeley Unix, para que qualquer um pudesse desenvolver sua própria solução. Temos o DNS, ou Domain Name System. Temos o sendmail, que roteia todos os e-mails. Temos o Apache, que se tornou o principal servidor web. Nada disso surgiu com o pensamento de “vamos acabar com o código fechado”. Queríamos fazer coisas novas e legais. Essas foram as coisas que realmente importaram, no fim das contas, muito mais do que o Linux.

Da mesma foram, vejo o que Chris Schroeder fala sobre a adoção de tecnologia blockchain na África, mas não estou nem perto de poder validar isso. Acredito que poderia empoderar pessoas que ainda estão de fora do sistema. Mas ficaria muito, muito surpreso se o blockchain fosse capaz de promover um sistema financeiro verdadeiramente descentralizado. Há muitos pontos em que ele pode ser centralizado e outros em que precisará que o seja. Onde estão as salvaguardas? As pessoas em posição de poder nas redes estão lá por bons motivos. Temos um mundo complexo de coisas totalmente descentralizadas, bem como coisas que facilitam a descentralização.

Mas você reconhece que há aspectos da tecnologia comercial ou de consumo que são excessivamente centralizados no momento?

Há coisas que centralizamos desnecessariamente. Não vejo a alternância de descentralização e centralização como algo ruim. Em geral, na fase de centralização algumas coisas são mal conduzidas. Um bom exemplo é o notebook. Foi o último estágio da revolução do computador pessoal, mas hoje seu notebook é cada vez menos seu e cada vez mais o da Apple ou da Microsoft. O iTunes é outro ótimo exemplo. Costumávamos gravar CDs e tínhamos nossos próprios arquivos de música. Agora, a Apple diz: “Você precisa entrar na sua conta para ouvir suas músicas. Precisa fazer login para usar seu notebook”.

Este é um exemplo do excesso de centralização, já que todas as empresas hoje querem ser serviços de assinatura. Todas querem impor lock-in (artifício para manter a base instalada, ganhando dinheiro com suporte, manutenção, expansões e crescimento orgânico).  

Vendedores da Amazon [dizem]: “Prefiro não fazer negócios com você porque fica com uma fatia muito grande do bolo. Manipula o jogo. As pessoas pesquisam meu produto e você mostra a elas um de terceiros que lhe garante maior lucro.” É exatamente isso que eu chamo de “aluguel de algoritmos”. É o que acontece quando se está no controle do algoritmo.

No fim, iremos dizer: “Chega, precisamos de algo novo”. Em essência, o excesso de centralização acaba gerando uma nova onda de descentralização.

Esta entrevista foi editada para maior clareza e brevidade


SOBRE O AUTOR

Mark Sullivan é redator sênior da Fast Company e escreve sobre tecnologia emergente, política, inteligência artificial, grandes empres... saiba mais