O fim do cargo júnior

Quem vai sobrar para assumir responsabilidades quando não houver mais ninguém aprendendo a começar?

cérebro em uma cadeira em frente a um computador
Crédito: oatintro/ Getty Images

Monica Magalhães 4 minutos de leitura

Antigamente, mineiros levavam para o trabalho canários em gaiolas para dentro das minas de carvão. Por quê? O canário é muito mais sensível a gases tóxicos (como monóxido de carbono e metano) do que os humanos. Se o canário começasse a se agitar ou morresse, era um sinal precoce de perigo para os mineiros.

Ou seja, o canário não era o problema. Ele era o alarme biológico, o sintoma visível de uma ameaça invisível.

Nossos jovens hoje são como os canários na mina. Eles são os primeiros a sentir os efeitos da automação por IA no mercado de trabalho. Se eles estão “morrendo” (ou seja, não estão conseguindo entrar no mercado), isso pode ser um alerta de que algo muito maior está prestes a acontecer para todos os outros.

É com essa analogia que foi lançado recentemente o relatório Canaries in the Coal Mine? Six Facts about the Recent Employment Effects of Artificial Intelligence” (Canários na mina de carvão: 6 fatos sobre os efeitos da inteligência artificial os empregos).

Assinados por Erik Brynjolfsson (do Stanford Digital Economy Lab), Bharat Chandar e Ruyu Chen, o estudo tem potencial para revirar discussões sobre trabalho, IA e juventude empregável.

O clássico “júnior” que funciona como porta de entrada para uma carreira parece estar com os dias contados e ninguém está falando sobre isso.

Utilizando dados inéditos da ADP, a maior processadora de folhas de pagamento dos EUA, os autores deram luz a uma evidência forte de mudança no futuro do trabalho: jovens de 22 a 25 anos viram uma queda média de 13% no emprego em ocupações altamente expostas à IA – justamente aquelas onde tarefas técnicas e repetitivas estão sendo automatizadas por ferramentas generativas.

Esse dado não está isolado. Ele compõe um dos seis achados principais do estudo, todos apontando para um mesmo cenário: a IA não está apenas transformando o trabalho, ela está reconfigurando os modelos de entrada no mundo profissional.

O FIM DOS CARGOS DE ENTRADA

O que define um cargo de entrada? Tradicionalmente, ele é ocupado por alguém que está aprendendo. O júnior é aquele que executa tarefas simples, repete processos, documenta rotinas, responde a e-mails, atualiza planilhas, revisa contratos, pesquisa informações. Um ritual corporativo necessário: fazer para aprender. Aprender para subir. Mas a IA não aprende. Ela já sabe.

Ferramentas generativas como GPT-4, Claude 3, Copilot e similares são hoje capazes de executar, com fluência e velocidade, exatamente aquelas tarefas que antes justificavam a existência dos cargos de entrada.

silhueta de jovens em pé olhando seus celulares
Crédito: piranka/ iStock

O que antes era feito por alguém em processo de formação, com erros, dúvidas, pausas para perguntar, agora é feito por um sistema que entrega em segundos o que o humano levaria horas para entender, errar e tentar de novo.

Estamos, então, diante de uma figura curiosa: o júnior ideal, para muitas empresas, é um modelo de linguagem. Não pede feedback. Não reclama da meta. Não precisa de onboarding. E, se errar, basta apertar “regenerate response”. A empresa não precisa mais de aprendizes, só de operadores.

Se a base desaparece, a escada inteira desmorona.

A principal consequência disso é estrutural: a empresa perde o incentivo (e o modelo) de contratar alguém em formação. Por que investir tempo e recursos em um ser humano incompleto quando você pode usar uma IA já “pré-treinada” por milhões de interações?

Pela primeira vez, a barreira de entrada não é o salário. Não é a vaga. É a utilidade objetiva frente a uma máquina. E o mais perturbador: essa substituição não gera trauma organizacional.

Ninguém “demite” o júnior. Ele simplesmente não é contratado. Não há corte, não há protesto, não há manchete no jornal. É uma exclusão silenciosa, gradual e aceita com eficiência de planilha.

COMO VIRAR SÊNIOR SEM SER JÚNIOR?

Vamos ser francos: formar alguém do zero nunca foi tarefa simples. É custoso, leva tempo, exige paciência e abertura para o erro. Mas em 2025, com pressões por produtividade, metas de eficiência e ferramentas que fazem bem o “trabalho chato”, é mais fácil plugar um copiloto do que treinar um estagiário.

O resultado é um novo organograma implícito, onde a base desaparece e o meio tenta se manter relevante mediando entre IAs e decisões humanas.

Toda carreira tradicionalmente segue uma lógica simples: você começa por baixo, aprende fazendo, cresce com o tempo. Mas agora temos um problema: os cargos de entrada estão desaparecendo. Se ninguém contrata pessoas no início da carreira, como elas vão ganhar experiência para ocupar cargos mais altos no futuro?

Crédito: Freepik

É aí que está o verdadeiro risco. Se a base desaparece, a escada inteira desmorona. Sem júnior, não há pipeline de talentos. Sem pipeline, não há sênior, não há liderança, não há futuro.

Estamos criando um mercado que, no curto prazo, celebra eficiência, mas no longo prazo cava um buraco na própria sucessão. Talvez estejamos treinando IAs brilhantes, mas estamos deixando de treinar seres humanos.

A questão já não é se a inteligência artificial vai roubar empregos. A questão é: quem vai sobrar para assumir responsabilidades quando não houver mais ninguém aprendendo a começar?


SOBRE A AUTORA

Monica Magalhães é futurista e pesquisadora de tecnologias emergentes. saiba mais