O labirinto de Borges

O surgimento dos clones digitais é o começo de uma doce promessa e o início de uma viagem para dentro do labirinto em chamas da identidade e do tempo

Crédito: Fondazione Giorgio Cini

Guido Sarti 7 minutos de leitura

Há uma teoria não confirmada de que o escritor argentino Jorge Luis Borges nunca existiu. Um dos autores mais importantes do século 20 teria sido inventado por outros três escritores. O que começou com um pseudônimo ganhou corpo, rosto e até um passado.

A figura que conhecemos como Borges seria um ator uruguaio de segundo escalão que lia os originais em primeira mão e recebia instruções do trio sobre o que falar e como se portar em aparições públicas.

Em um dos momentos mais surrealistas do jornalismo mundial, Borges foi perguntado sobre isso em uma entrevista de 1981 ao "El País". A resposta do a(u)tor só alimentou o mistério e tem um pouco a ver com inteligência artificial, dupes, o mito do original e nossa relação com o tempo.

Jorge Luis Borges (Crédito: Wikipedia)

Vamos olhar para essa história como quem contempla um quadro ou assiste a um filme. É possível criar reflexões a partir de ficções, não é? Pois vamos supor por um instante que essa teoria não confirmada seja verdadeira – isso porque os insights que ela pode nos trazer certamente são.

Essa formidável história borgeana é quase um exemplo de dupe às avessas. O termo dupe vem de “duplicata” e é o nome que se dá para as cópias digitais que hoje a tecnologia nos permite criar. Imagine só uma réplica sua entrando naquela reunião de Zoom que poderia ter sido um e-mail. Se você entregar dados suficientes para a empresa certa, isso pode acontecer já já.

O trio de escritores tinha o trabalho de criar e escrever enquanto o ator uruguaio colhia os louros. Agora, uma nova onda de inteligência artificial usa de um princípio parecido para fazer o contrário: você é clonado digitalmente – ou cria um clone digital – para ter tempo de fazer o que te der na telha, inclusive nada.

Essa é a promessa da Aphid. A empresa criou um produto chamado “aClones”: a ideia é que você coloque esses bots para executar suas tarefas do dia a dia enquanto você ganha dinheiro sem trabalhar. Basta escolher seu bot no marketplace da Aphid – as opções vão desde a negociação de criptomoedas até redação de artigos – e pronto. Cada vez que “você” completa uma tarefa, você – sem aspas – recebe por isso.

Crédito: Reprodução/ Aphid

O usuário não precisa saber nada de código ou programação, por mais que o resultado da tarefa dependa disso. Esse conhecimento não faz parte da sua job description, mas sim da job description do bot. Em inglês, “aphid” significa “pulgão”, um inseto parasita que se alimenta da seiva das plantas. O pulgão é considerado uma praga agrícola.

“Imagine acordar sorrindo porque tudo o que você precisa fazer é pensar no que quer fazer a seguir, não no que precisa fazer a seguir”, afirmou Brandon Cooper, CEO da Aphid, em reportagem recente da Forbes. “Nosso objetivo é ajudar as pessoas a respirar livremente novamente, para lembrá-las de que não precisam trabalhar o tempo todo”, completa Cooper.

Sim, a inteligência artificial está trabalhando por nós. E algumas perguntas surgem a partir dessa constatação, uma delas fatalmente sendo: mas não é isso que sempre fizemos com a tecnologia?

a ideia é que você coloque os bots para executar suas tarefas do dia a dia enquanto você ganha dinheiro sem trabalhar.

A meta da Aphid é acabar com as oito horas de trabalho, cinco vezes por semana. Não se trata mais de perder o trabalho para um robô. A antiga distopia futurista agora pode dar lugar a uma sedutora utopia em que o trabalho não é mais o dono da nossa vida. 

A partir de gravações de seu rosto e da sua voz, a plataforma Synthesia cria um clone digital seu. Também já existe uma ferramenta que responde mensagens no seu estilo (essa, bem menos sofisticada que as iniciativas citadas previamente, pode funcionar a partir da análise de todas as mensagens que você manda pelo chat da sua rede social favorita). 

Essas ferramentas – por mais difusas e duvidosas que possam parecer em 2023 – tocam em certas feridas que estão abertas pelo menos desde a Revolução Industrial. A questão da identidade e a questão do tempo são algumas delas. 

TEMPO TEMPO TEMPO TEMPO 

O argumento central da publicidade de todas essas plataformas é o mesmo: passe a ser dono do seu próprio tempo. Não por acaso, essa parece ser também a questão central dos nossos tempos.

Crédito: Pixabay

A depressão e a ansiedade estão mais fortes do que nunca. Fortes a ponto de questionar se não fomos demasiadamente ansiosos e nos precipitamos em dizer que elas foram os grandes males do século passado.

Tenho a impressão de que muitas das questões de saúde mental que atravessam nossa sociedade têm sua origem em como lidamos (ou somos obrigados a lidar) com o tempo. Nossa relação com o tempo e com o trabalho nunca foi tão doentia. Tão nitidamente doentia: nunca se percebeu e se falou tanto a esse respeito.

Arrisco dizer que, excluindo as necessidades mais básicas (saneamento básico, educação, comida, saúde, segurança, água limpa), se a humanidade pudesse escolher um Grande Desejo para o Imenso Gênio da Lâmpada Infinita seria esse: ter mais tempo.

 PINK NEWTON & ISAAC FLOYD

“Não tenho certeza se existo. Sou todos os autores que li, todas as pessoas que conheci, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados”.  Essa foi a resposta de Borges à pergunta do começo do texto. Eu considero essa perspectiva fascinante. A música Breathe, do Pink Floyd, tem uma passagem que diz basicamente a mesma coisa:

And all you touch and all you see

Is all your life will ever be

[Em tradução livre: “Tudo que você toca e tudo que você vê/ É tudo que sua vida será”]

Muito do que chamamos de identidade é um caleidoscópio tridimensional de experiências, memórias e sensações. Essa

Imagine só uma réplica sua entrando naquela reunião de Zoom que poderia ter sido um e-mail.

reflexão tem a ver com o mito do original e com um conceito que me parece mais confuso do que a gente gostaria que fosse: a noção de que as ideias têm dono.

Quando percebemos que o conceito de identidade é pouco trivial e flerta com o acaso, a própria noção de propriedade intelectual começa a ficar flácida ao ponto de se tornar quase cínica.

Exemplo: suponhamos que eu sou um poeta passando por uma crise de criatividade. Vou até uma praça em busca de inspiração. Se escrevo um poema sobre uma família tomando sorvete de morango na praça ensolarada, enquanto vejo uma família tomando sorvete de morango numa praça ensolarada, quão ético é o fato de eu recolher direitos autorais sobre o poema e a família não?

Podem dizer que o poeta adiciona subjetividade à cena, mas qual é mesmo o preço da subjetividade? É muito difícil apontar onde termina uma ideia e começa outra. A frase que ficou famosa com Isaac Newton, "se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes", fala exatamente sobre isso. 

TECNOLOGIA NEM-NEM

Como já foi dito, a inteligência artificial não é nem inteligente e nem artificial. Ela é quase como um papagaio com uma memória imensa. Pelo menos por enquanto, não adianta esperar que uma ideia imprevisível, inventiva ou disruptiva seja cuspida por uma dessas plataformas, incapazes de um mero pensamento crítico sequer. Hoje, a IA é quase como se tivéssemos dado anabolizantes a uma ferramenta de auto complete. E o suco vicia, não é mesmo?  

Automatizar uma tarefa é uma coisa. Substituir alguém em uma reunião de Zoom é outra muito mais complexa.

Noam Chomsky, um dos maiores intelectuais e linguistas desse e do último século, há pouco escreveu em um artigo para o "The New York Times": “na ausência de uma capacidade de raciocinar a partir de princípios morais, o ChatGPT foi grosseiramente restringido por seus programadores a contribuir com qualquer coisa nova para discussões controversas – isto é, importantes. Sacrificou a criatividade por uma espécie de amoralidade”. 

Essas ferramentas prometem um El Dorado que eu ainda não consigo cravar se é tão dourado assim. Mas que são promessas grandiosas, isso são.

A questão é a incapacidade de replicar humores, lapsos de memórias, uma eventual gagueira numa palavra mais cheia de consoante, a resposta de uma pergunta inesperada ou mesmo uma mudança de opinião.

Automatizar uma tarefa é uma coisa. Substituir alguém em uma reunião de Zoom é outra muito mais complexa. Ficaria muito óbvio, a não ser que todos os outros participantes da reunião também fossem clones digitais.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais