O metaverso nem chegou, mas já tem uma longa história

Em essência, o metaverso é um mundo virtual. O telégrafo e, mais tarde, o telefone, são seu precursores

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Tom Boellstorff 5 minutos de leitura

Em um romance passado no metaverso, Nattie começa a receber mensagens de texto anônimas. A princípio, “C”, o misterioso remetente, dizia morar em uma cidade próxima. Mais tarde, ela descobre que “Clem” era um homem solitário que trabalhava em um escritório como o dela. Nattie “vivia, por assim dizer, em dois mundos” – no mundo do tédio do trabalho e em outro online onde “não lhe faltavam relações sociais”.

As mensagens os aproximaram. Nattie logo percebeu que “estava se apaixonando por este amigo ‘tão próximo e ainda tão distante’”. O relacionamento quase foi por água abaixo quando um colega de Clem a visitou em seu escritório se passando por ele, mas a farsa foi exposta a tempo.

Esta última frase revela o final de “Wired Love” (Amor Conectado). Publicado em 1879, o romance da autora Ella Thayer sobre “o mundo telegráfico” faz previsões incríveis. Muitos aspectos do metaverso atual já eram familiares há 143 anos.

O QUE É VELHO É NOVO

Como um antropólogo que estuda mundos virtuais há quase duas décadas, descobri que o rico passado do metaverso molda as interações tecnológicas sem precedentes de hoje.

E isso não é acidental. O metaverso contemporâneo é predominantemente desenvolvido e impulsionado por corporações cujos modelos de negócios exigem inovações. Isso normalmente leva a enormes implicações financeiras e sociais.

Em essência, o metaverso é definido como um mundo virtual. E, como ilustra “Wired Love”, o telégrafo e, mais tarde, o telefone, são seus precursores.

As masmorras multiusuário, ou MUDs, surgiram na segunda metade do século 20. Esses mundos virtuais apareceram em redes de computadores locais no final da década de 1970 e migraram para serviços de internet discada nas décadas de 1980 e 1990.

Richard Bartle, cocriador do primeiro MUD, observou que, em 1993, mais de 10% de todo o tráfego da internet estava nos MUDs. Mundos virtuais com avatares existem desde o Habitat, lançado em 1985.

Com o advento da banda larga nos anos 2000, muitos aspectos-chave do metaverso contemporâneo se estabeleceram. Estudiosos, como Wagner James Au, enfatizam repetidamente quanto os “novos” desenvolvimentos vêm reacendendo debates de longa data.

MERCADO IMOBILIÁRIO E AS LEIS DA FÍSICA VIRTUAL

A história do metaverso revela muito sobre imóveis virtuais. Especialistas se entusiasmam com a “corrida imobiliária” virtual. O The Sandbox, por exemplo, costuma vender lotes por cerca de US$ 2,3 mil. Em dezembro de 2021, um usuário chegou a pagar US$ 450 mil por um terreno ao lado da mansão virtual do rapper Snoop Dogg.

Por que este aumento de preço? Seu cofundador, Sebastien Borget, explicou que o The Sandbox tem um número finito de terrenos. Assim, apenas poucas pessoas podem comprar um lote ao lado de Snoop Dogg.

Acredito que o The Sandbox deve muito ao mundo virtual Second Life, onde os espaços para construção são chamados de “sandboxes”, desde seu lançamento, em 2002.

O Second Life originalmente tinha um recurso de “teletransporte ponto a ponto” (P2P). Você podia ir a qualquer lugar em um instante. Mas, em 2003 a Linden Lab, empresa responsável por esse mundo virtual, desativou o P2P. Os usuários passaram a ser transportados para o “telehub” mais próximo de seu destino.

Isso teve consequências para o mercado imobiliário virtual. Valiosos para negócios e entretenimento, os terrenos próximos aos telehubs passaram a ser vendidos por um preço bastante alto. Isso até 2005, quando a Linden Lab anunciou de repente o fim dos telehubs e o retorno do P2P.

Em dezembro de 2021, um usuário chegou a pagar US$ 450 mil por um terreno ao lado da mansão virtual do rapper Snoop Dogg.

Terrenos próximos a antigos telehubs deixaram de ser especiais e, com isso, perderam valor; fazendo com que algumas pessoas perdessem milhares de dólares. Nenhum proprietário é capaz de mudar as leis da física do mundo virtual, mas a Linden Lab pode, literalmente, recodificar sua programação e acabar com a escassez.

Quase 20 anos depois, um terreno ao lado da mansão virtual de Snoop Dogg pode chegar a custar US$ 450 mil, já que o The Sandbox não tem o recurso P2P. Mas, se a empresa adicioná-lo de repente, um investimento como este pode se tornar inútil. O fato de especialistas continuarem a ignorar isso revela o perigo de esquecer a história do metaverso.

IMERSÃO: SENSORIAL OU SOCIAL?

Outro exemplo da importância da história para o metaverso diz respeito à ideia de ambientes virtuais. Mundos virtuais não apenas conectam lugares; eles são os lugares.

As pessoas já jogavam xadrez usando o telégrafo há 150 anos; e os tabuleiros virtuais não estavam em nenhuma das extremidades do fio. Em 1992, Bruce Sterling observou que as chamadas telefônicas não ocorrem no seu aparelho ou no da outra pessoa, mas sim no ambiente virtual.

Em 1990, os fundadores do Habitat concluíram que o metaverso é definido mais pelas interações entre as pessoas dentro dele do que pela tecnologia que o cria. Eram especialmente céticos em relação às tecnologias de realidade virtual, observando que “a atual euforia que parece cercar o tema é, na nossa opinião, excessiva e um tanto deslocada”.

o metaverso é definido mais pelas interações entre as pessoas do que pela tecnologia.

A questão não é o potencial da realidade virtual, mas a ideia derivada do filme "Matrix" de que a imersão sensorial é necessária para o metaverso em todas as instâncias. A principal distinção é entre a imersão sensorial e a social. E a história sugere que a social é a base do metaverso.

APRENDENDO COM A HISTÓRIA

Apesar de ter um longo caminho pela frente, o metaverso também tem uma longa história. Proximidade e imersão são apenas dois exemplos de aspectos fundamentais que ela pode ajudar a desmistificar.

Isso é importante, já que a atual mistificação desenfreada não é acidental. A versão que estamos vendo é majoritariamente desenvolvida e impulsionada pelas gigantes da tecnologia. Essas empresas buscam criar a ideia de que o metaverso é novo e futurista. Mas sua história é longa, pode revelar erros do passado e contribuir para melhores futuros virtuais.


SOBRE O AUTOR

Tom Boellstorff é professor de antropologia na Universidade da Califórnia, em Irvine. saiba mais