O vale da estranheza
Como a teoria criada na década de 70 descreve a relação humana com a tecnologia até os dias de hoje

A inteligência artificial vem avançando cada vez mais para o centro das nossas vidas. A primeira vez que “conversei” com o Chat GPT tive uma sensação de surpresa e encanto. Quando me propus a entender o que estava acontecendo, o sentimento passou a ser de estranheza pois o impacto e a velocidade dos desdobramentos de IA vão muito além do que minha mente consegue digerir.
O impacto social pode ser tão ou mais profundo do que aquele que a humanidade enfrentou na Revolução Industrial. Junto com tanto progresso vimos pessoas mudando radicalmente suas vidas, saindo do trabalho nos campos para trabalhar em fábricas nas cidades. O abismo social que se abriu entre quem tinha a chave da tecnologia (máquinas) e quem apenas apertava os botões.
Trazendo para nossa realidade, até três anos atrás víamos escolas de programação para crianças se multiplicando pela cidade. O trabalho de um programador era mais concorrido e bem pago do que quase qualquer outra carreira. Não demorou muito e o jogo virou. Agora, o sucesso e uma carreira de milhões só é verdade apenas para a nata dos programadores. A “classe média” da profissão está morrendo pelas próprias mãos, pois também passou a ser substituída por código. Cada vez mais pessoas fazem o tal do “vibe code”, programar apenas com instruções em linguagem natural e sem nenhum conhecimento técnico.
Apesar de estarmos tentando nos equilibrar enquanto as placas tectônicas de IA se acomodam debaixo dos nossos pés - com verdadeiros terremotos diários causados a cada novidade anunciada pelos impérios de tecnologia - a visão de alguns líderes envolvidos no tema promete um futuro muito melhor e menos caótico do que estamos vivendo hoje.
Uma analogia interessante usada por Jeff Bezos (fundador da Amazon) é a idéia de que a IA será uma camada horizontal que conecta a tudo e a todos como a eletricidade. Hoje não sabemos viver sem eletricidade por algumas horas pois já nos desesperamos em ficar sem a conexão do celular, a comida no freezer ou o conforto do ar-condicionado.
A jornada de adoção de tecnologia, especialmente a IA, segue um padrão que é muito bem ilustrado pelo conceito de “Vale da Estranheza”, cunhado pelo roboticista japonês Masahiro Mori na década de 1970. Ele descreve o fenômeno psicológico pelo qual representações humanóides (como robôs, avatares digitais ou bonecos realistas) que se aproximam perigosamente da aparência e dos movimentos humanos, mas ainda apresentam falhas sutis, como olhos vazios ou gestos mecânicos, despertam em nós uma repulsa instintiva.
Essa "queda no vale" ocorre porque nosso cérebro, evoluído para detectar rapidamente ameaças ou anomalias em rostos familiares, interpreta essas imperfeições como algo potencialmente perigoso, evocando um desconforto que vai além da mera estranheza, beirando o terror primal. Essa tese também sugere que depois do abismo vem a curva de ascensão até a adoção natural da tecnologia, onde o limiar de humanidade é restabelecido até atingir uma integração natural com a inovação.
Comecei a notar esse incômodo sutil nas redes sociais digitais, ao ver meus amigos “sumindo” do meu feed para dar espaço a desconhecidos eleitos pela plataforma como sendo de meu maior interesse, curiosamente me entregando um conteúdo feito para despertar sensações instintivas de indignação ou inveja. Influenciadores que eu respeitava passaram a agradar mais aos algorítmos do que a si mesmos, na tentativa constante de sustentar sua visibilidade online.
Mais recentemente, a Meta e Open AI começaram a integrar ferramentas para geração de vídeos e imagens ultra-realistas, diretamente integrados às suas redes sociais (Imagine e Sora 2) permitindo a disseminação de conteúdos sintéticos em escala. Esse é o meu vale da estranheza. Nossas relações estão sendo intermediadas por conexões sintéticas e conteúdos enganosamente artificiais.
Um caso recente e emblemático aconteceu nos Estados Unidos com o lançamento do dispositivo “Friend”, um colar equipado com um dispositivo projetado para ouvir conversas e oferecer companhia constante na tela do seu celular. O lançamento foi realizado com uma campanha publicitária em estações e trens do metrô de Nova York, inundando a cidade com anúncios que promoviam o dispositivo como um “amigo” onipresente. Em poucos dias, muitos desses painéis foram vandalizados, em protesto à ideia de substituir relações reais por uma IA.
O que me deixa otimista é que, assim como a teoria de Masahiro Mori aponta uma superação do abismo através de um equilíbrio natural entre o humano e a máquina, já se percebem sinais de que estamos no início dessa fase ascendente, onde o resgate do mundo físico e a valorização de experiências presenciais fazem com que o pêndulo que estava em um extremo digital comece a buscar um equilíbrio na intercessão entre bits e átomos.
A artificialidade implícita no próprio nome da “Inteligência Artificial” vem de mãos dadas com todos os benefícios que a tecnologia promete - como cura antes de sintomas, tarefas cotidianas sem esforço, dispositivos que reinventam os limites da performance humana.
De acordo com uma análise recente do Financial Times em parceria com a Global Web Index (GWI), baseada em hábitos online de 250 mil adultos em mais de 50 países incluindo o Brasil, enquanto o número de usuários continua crescendo globalmente, o tempo gasto em redes sociais atingiu o pico em 2022 e registrou uma queda inédita de cerca de 10% até o final de 2024.
Este recuo é curiosamente liderado por jovens abaixo de 25 anos, uma inversão contraintuitiva que reflete uma mudança profunda nas motivações. A proporção de usuários que acessam as redes para "manter contato com amigos e família" despencou mais de 25% desde 2014, enquanto o uso para "preencher tempo ocioso" disparou, convertendo essas plataformas de espaços de conexão significativa em meros aliviadores de tédio.
Esse vácuo está sendo preenchido pelo ressurgimento da "mídia lenta" como newsletters, podcasts e vídeos longos que exigem atenção ativa ao invés da rolagem passiva. Substack e Spotify registram um boom de engajamento entre os com menos de 30 anos.
É também em resposta à fadiga digital que vemos os sinais mais claros sobre o resgate do mundo físico. De acordo com dados recentes, o setor de eventos no Brasil cresceu 19% no primeiro semestre de 2025, movimentando R$ 5,4 bilhões, o número de eventos esportivos aumentou 33% no mesmo período, e o turismo doméstico registrou alta de 6,5% no faturamento de janeiro a julho de 2025, alcançando R$ 127,7 bilhões, impulsionado por eventos esportivos com 40% dos jovens de 25 a 34 anos planejando viagens para competições.
Assim como toda inovação - que acontece devagar e então, de repente - vejo esses sinais de resgate da nossa humanidade como uma tendência que continuará a ganhar força gradualmente até alcançarmos uma relação mais natural com o que hoje tanto me incomoda no que é sintético. Concluo que o que ganha valor não são as infinitas possibilidades do digital, e sim o que se torna escasso por consequência dele. A verdadeira moeda da era da IA é o que devolve confiança no real, cultiva crescimento em comunidade e preserva nossa humanidade. O valor não está no que a IA produz, está no que ela não substitui.