Pesquisa de antecedentes no Tinder pode ser um tiro pela culatra

Créditos: Alexander Sinn/ Good Faces Agency/ Unsplash

Albert Fox Cahn e Sarah Roth 5 minutos de leitura

Desde meados de março, quem usa o Tinder consegue “puxar a ficha” de antecedentes do paquera em potencial. A ideia é fazer com que os usuários se sintam mais seguros. Tanto que a iniciativa conta com a parceria da Garbo, uma organização sem fins lucrativos que criou uma plataforma que permite a qualquer pessoa (nos Estados Unidos) acessar, gratuitamente, informações públicas sobre envolvimento em episódios de violência, como prisões, condenações e registros de importunação sexual.

De fato, é um padrão que já vimos se repetir incontáveis vezes: a violência do mundo real acaba sendo reproduzida no digital e, depois de muita enrolação, as plataformas – que lucram com os abusos – prometem tomar providências. As “soluções” propostas são convenientes – e convenientemente lucrativas –, mas só fazem tornar o problema ainda pior.

O exemplo mais recente no noticiário é particularmente doloroso: o Tinder vem se debatendo para encontrar uma forma de enfrentar as ameaças (bem reais) de intimidação de parceiros por meio de “checagens de antecedentes” com informações não comprovadas ou simplesmente falsas. Não só a parceria com a Garbo não vai garantir um ambiente mais seguro como pode até aumentar os riscos corridos pelos usuários.

É até difícil enumerar de quantas formas o plano do Tinder está destinado ao fracasso. Em primeiro lugar, checagem de antecedentes não funciona quando se trata de comportamento abusivo. Esse tipo de levantamento serve para se obter informações sobre uso de drogas ou dificuldades financeiras quando a pessoa é negra ou pertence a outras minorias vistas com desconfiança por agentes da lei.

PRIVILÉGIO E IMPUNIDADE

Agora, se o objetivo é tentar descobrir se a pessoa pode vir a se comportar de forma abusiva em relação ao parceiro (a), as informações não são tão úteis. Isso porque a maioria dos abusadores nunca é responsabilizada por seus atos. Quando é, entra em cena o mesmo padrão de discriminação que define cada dimensão da ação policial nos Estados Unidos.

As checagens falsas revitimizam aqueles que sofreram abuso, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de prevenir novos ataques.

Não só abusadores brancos têm mais probabilidade de se safarem das acusações como vítimas BIPOC (sigla em inglês para negros, indígenas e pessoas não-brancas) são, muitas vezes, presas junto com seus agressores. Assim, se o usuário é um abusador branco e rico, o Tinder vai deixar o caminho livre para ele na maioria das vezes (estatisticamente falando).

Mas fica pior. As checagens falsas revitimizam aqueles que sofreram abuso, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de prevenir novos ataques. Logo, usuários que não ativarem a verificação ou que extrapolarem o limite de consultas gratuitas (e que não tiverem dinheiro para pagar por mais) poderão ser responsabilizados por não conseguirem prever que poderiam ser atacados. Isso seria mais uma justificativa para autoridades e pessoas em posições de poder ignorarem as vítimas, silenciarem suas vozes e negar-lhes ajuda. Inteligência artificial pode não ser eficiente para prevenir crimes, mas é bem efetiva quando se trata de deixar as coisas como estão.

À Fast Company, o Match Group (holding que controla o Tinder) enviou um comunicado no qual afirma que o grupo está comprometido com a segurança dos usuários do aplicativo. “Estamos focados em aprimorar a tecnologia e em implementar práticas que elevem o padrão de toda a indústria. Estabelecemos parceria com a Garbo – organização sem fins lucrativos, fundada por mulheres, que gerencia uma plataforma de checagem de antecedentes, ou seja, permite acesso ao histórico de indivíduos envolvidos em casos de violência e abuso – para garantir que as pessoas se informem melhor antes de fazer escolhas ou tomar decisões que afetem sua segurança, além de atuar junto às autoridades no sentido de remover informações que tenham impacto negativo sobre comunidades vulneráveis. Nossa abordagem em relação à segurança é multifacetada e centrada em ajudar a prevenir potenciais danos, de modo a criar uma experiência segura para todos”, diz o comunicado.

COMPRA E VENDA DE DADOS PESSOAIS

O cavalheirismo digital do Tinder é tão antiquado quanto os patriarcas do passado. Essas medidas protetivas “performáticas” não levam em conta que o modelo de negócios do aplicativo coloca as vítimas em posição de risco. O Tinder e outras plataformas do gênero funcionam coletando nossos dados pessoais e informações particulares.

Se o Tinder estivesse realmente disposto a proteger seu público, encontraria uma forma de evitar que os usuários fossem vigiados.

Essas informações formam um fluxo constante de dados, enviados aos anunciantes e a quem mais se disponha a pagar por isso. Só que eles estão cada vez mais acessíveis, não apenas para os interessados em rastrear nossa navegação na internet para exibir anúncios, mas também para abusadores que queiram nos seguir até o trabalho ou até em casa.

O Tinder não pode alegar que preserva a segurança dos usuários se a plataforma se reserva o direito de compartilhar dados pessoais que podem colocar seus donos em perigo. Já vimos outros aplicativos de relacionamento venderem os dados que coletaram por algumas centenas de dólares. O Tinder pode fornecer dados de localização. Combinando as fontes, pode-se reconstruir os movimentos de uma determinada pessoa e sua vida amorosa. Um ótimo nicho de negócios para stalkers especialistas em tecnologia.

As ameaças aos usuários do Tinder não partem só dos que violam a lei, mas também daqueles que alegam defendê-la. Cada vez mais, autoridades ligadas às áreas de justiça e segurança pública compram os mesmos dados adquiridos pelos anunciantes. É bem assustador quando o departamento de polícia local pode conseguir informações sobre cada lugar onde você esteve, e mais ainda quando se trata do departamento de imigração.

COMPROMISSO COM A SEGURANÇA?

Se o Tinder estivesse realmente disposto a proteger seu público, não investiria nessa nova forma, meio torta, de vigilância, mas encontraria uma forma de evitar que os usuários fossem vigiados. E, se quisesse ajudar os que são alvo de abusadores, tanto no aplicativo quanto fora dele, investiria nos inúmeros grupos e comunidades que ajudam essas pessoas com o que elas mais precisam: recursos pouco tecnológicos, como um lugar seguro para ficar quando conseguem escapar de seus algozes.

A tecnologia tornou o problema do assédio ainda pior, mas a solução não são mais ferramentas discriminatórias e não confiáveis. A solução é ouvir as vítimas. Um esquema real de proteção prioriza as necessidades dessas pessoas, como suporte e independência financeira, segurança sobre seus dados particulares e apoio aos grupos que lutam com e pelos sobreviventes de episódios de assédio e abuso – online e off-line.


SOBRE O AUTOR

Albert Fox Cahn é fundador e diretor executivo da organização pró-direitos civis Surveillance Technology Oversight Project (S.T.O.P.).... saiba mais