Privacidade, humanidade e criptomoedas. O que há por trás do escaneamento de íris

Tools for Humanity troca criptomoedas por dados biométricos de brasileiros e promete criar uma carteira de identidade digital

Crédito: Suman Bhaumik/ Getty Images

Camila de Lira 12 minutos de leitura

Em um piscar de olhos, brasileiros estão entrando em um projeto controverso de Sam Altman, fundador da Open AI. A rede World, parte da iniciativa Tools for Humanity, capta dados da íris das pessoas. Segundo a companhia, o objetivo é criar uma “identidade humana única”.

Em troca, a empresa  se compromete a dar 48 critpomoedas da World avaliadas em R$ 652. O projeto desembarcou em São Paulo no final de 2024 e levanta dúvidas sobre privacidade, consentimento e humanidade na era da inteligência artificial.

No Brasil, mais de 400 mil pessoas foram escaneadas pela companhia. O número aumenta. Os pontos de coleta de dados também. No começo de dezembro, eram 10 espaços. Agora são 40 lugares voltados para a captura de dados da íris na cidade de São Paulo.

O sistema está com agendamento lotado, com filas de pessoas esperando para passar pelo Orb, aparelho com câmera, sensor de temperatura e profundidade, que escaneia o olho e a íris.

Idealizado por Sam Altman e Alex Blania, o projeto foi fundado em 2019 e recebeu US$ 250 milhões em investimentos de Andreessen Horowitz e Reid Hoffman, grandes nomes do mercado de tecnologia norte-americano.

Com objetivo de criar um protocolo de autenticação online a partir dos dados biométricos, a startup levou seus aparelhos que captam dados da íris e do rosto para mais de 20 países.

SINAL DE ALERTA

Para chamar a atenção dos usuários, a empresa oferece World Coins, as próprias criptomoedas, em troca dos dados. Tais ativos digitais não podem ser usados nos Estados Unidos. O primeiro milhão de identidades ativas da plataforma veio de esforços em países como Indonésia, Tailândia e Quênia.

Como no Brasil, o retorno financeiro imediato para os participantes chamou a atenção da população. Mas a captação de dados ligou o alerta dos governos. A iniciativa pausou operações na Índia, no ano passado, por ação do governo. E foi banida da Espanha, de Portugal e da própria Índia.

Na Coreia do Sul, o projeto não só foi barrado como multado em US$ 830 mil por violação em coletar e transferir dados pessoais. Autoridades francesas e alemãs publicaram questionamentos sobre a atuação da World. Em Hong Kong, a tecnologia da World foi banida pelas autoridades, que chamaram a coleta de dados do projeto de “desnecessária e excessiva”. 

A resistência dos governos barrou o avanço da World, que chegou a 10 milhões de verificações no mundo no final do ano passado. O plano era escanear a íris de um bilhão de pessoas em 2023.

Em entrevista ao jornal "Buenos Aires Times”, em maio de 2024, o CEO da Tools for Humanity, Alex Blania, afirmou que o protocolo é aberto, verificável e “não controlado por nenhuma grande empresa de tecnologia ou governo”. Nem sempre os governos têm competência para fazer isso, mas é um direito que deveria estar sob o controle dos cidadãos", afirmou.

No Brasil, a atividade da World está sendo investigada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) mas, por enquanto, está autorizada. 

FÍSICO E DIGITAL

Na fila de espera de uma das lojas em São Paulo, o tema inteligência artificial é falado. Alguns chamam de robô, outros, de ChatGPT produto da Open AI, cujo CEO é Sam Altman. 

Em documento publicado para a imprensa, disponível nos pontos de coleta, a World afirma que está criando “as ferramentas que os seres humanos precisam” para se proteger da IA. “O protocolo não quer saber quem você é, apenas se você é humano, uma distinção que se torna cada vez mais importante com o avanço da inteligência artificial”, indica o documento.  

Para Marcos Simplício, professor da Universidade de São Paulo, a justificativa da companhia para captar o dado biométrico é vaga. Ele é especialista em segurança da informação e criptografia e dá aula no Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP.  “As pessoas entenderam pouco porque está mal explicado. Não faz sentido o que eles estão propondo para o objetivo”, diz.

Fila para escaneamento de íris na loja da Orb

A biometria é um dado físico que, para ser verificado corretamente, necessita de um ambiente controlado ou um hardware próprio (normalmente, os dois). Quando um banco captura a digital de um cliente, ele só poderá usá-la no lugar da senha em outros aparelhos aprovados pela instituição e em ambientes monitorados.

Quando vai para o espaço online, o dado perde parte significativa do seu poder de identificação, já que ele não pode ser checado com 100% de certeza. Não é à toa que o protocolo de segurança de fintechs exige o uso de dados biométricos combinados com outro fator, como login e senha.

“Se o ambiente não é controlado, o hardware não é próprio, ele pode ser fraudado. Uma foto de alta resolução do olho pode se passar pela íris da pessoa”, alerta Simplício.

O que a World propõe é um teste de uma tese. A tese diz que a íris pode ser usada como prova da identidade na web3.  No mundo cripto, existem outros tipos de identificação menos invasivas, como a Gitcoin Passaport, que recolhe selos de sites por onde uma pessoa passa e cria um “passaporte digital” para provar que o humano é aquele.

NÃO É SÓ TECNOLOGIA

Na parte da infraestrutura, o World conta com tecnologias de privacidade avançada. Usa sistemas como a Computação Segura em Várias Partes (MPC, na sigla em inglês) que divide o dado inicial em vários servidores e criptografia homomórfica (FHE), que permite o cálculo em dados criptográficos sem precisar desfazer a encriptação.

Além disso, a World ID opera em uma blockchain fechada, usando o protocolo de conhecimento zero. Basicamente, o protocolo consegue provar a validade da afirmação sem repassar qualquer dado sobre ela. No futuro, o projeto migrará para uma blockchain aberta.

“Os fragmentos criptografados não revelam nada sobre o usuário, nem podem ser efetivamente vinculados de volta a ele", explica Rodrigo Tozzi, gerente de operações da Tools for Humanity. 

A tecnologia sozinha não basta para garantir o direito de proteção de dados. O toque humano ainda é essencial.

A tecnologia sozinha não basta para garantir o direito de proteção de dados, recém adicionado na Constituição brasileira. O toque humano ainda é essencial, e é aí que a World gera dúvidas. 

Para agendar a leitura da íris, a pessoa precisa baixar o aplicativo da World. Por lá, ela também receberá a criptomoeda. Há indicação de como a pessoa deve comparecer ao agendamento, mas não o que será feito com os dados. 

Nos espaços visitados pela Fast Company Brasil, as sinalizações físicas sobre o funcionamento da World se resumem a um folheto de três páginas, dado apenas para quem solicitava, e um vídeo de um minuto e 58 segundos. 

Nas diversas sessões que a reportagem presenciou, o vídeo foi exibido rapidamente, com o som abafado pelas vozes dos espaços cheios. Poucos prestam atenção. Os funcionários da World, tampouco, reforçam a necessidade de prestar atenção ao explicativo. 

Orb, câmera de alta definição que faz a "verificação de humanidade" (Crédito: Divulgação)

Com imagens de usuários nas ruas de Nova York, o vídeo tem uma voz aparentemente sintética, explicando motivações e objetivos da Word. Não há menção à palavra “experimento”, “tese” ou “teste” usadas por membros da companhia para explicar a tecnologia da empresa para a Fast Company Brasil

Em um dos espaços visitados pela reportagem, não havia telas instaladas, eram os funcionários que cuidavam da explicação. Embora solícitos, eles davam informações de acordo com as perguntas.

Caso não recebessem dúvidas, como aconteceu em alguns grupos de pessoas que iriam para a Orb, não explicavam sobre o uso dos dados, apenas sobre os passos que as pessoas deveriam seguir para capturar os dados rapidamente no aparelho.

Segundo Tozzi, os operadores terceirizados "passam por treinamentos e por um rigoroso processo de conhecer seu cliente". Ele diz que a empresa obriga o uso dos vídeos.

NÃO ACREDITO EM DINHEIRO "DE GRAÇA"

A lei brasileira exige que o titular dê consentimento para o uso de dados biométricos, estipulando que o consentimento precisa ser livre, informado e inequívoco. A falta de informação clara pode levar a um “consentimento viciado”, como explica Vinícius Silva, pesquisador da área de assimetrias e poder da Data Privacy Brasil, especializada em cursos e treinamento sobre privacidade e proteção de dados.

“Quando pessoas são incentivadas a consentir sem entender a totalidade dos fatos, o consentimento é fragilizado. Isso é especialmente problemático em contextos que envolvem compensação financeira ou exploração de desigualdades sociais”, diz Silva.

Em postos de coleta por onde a Fast Company Brasil esteve circulavam famílias com crianças, jovens levando pessoas idosas, adultos apressados, gente com camiseta com mensagem “pró-cripto”.

Em um do locais em que não havia o vídeo com as explicações, Carla e Manuela*, de 48 e 53 anos, faziam perguntas a um dos colaboradores. As duas ficaram 10 minutos tentando entender como usar o “aplicativo do banco” da World Coin. Elas já tinham feito o escaneamento de íris.

O comerciante Eduardo Barros, de 35 anos, por exemplo, estava animado com a perspectiva futura das World Coins. Barros escaneou a íris em um shopping próximo à estação de metrô da Lapa. O objetivo é manter as World Coins e esperar a valorização das criptomoedas. “Sou investidor, não quero usar esse dinheiro agora”, afirmou.

O rapaz falou sobre as perspectivas de aumento da moeda e mostrou um aplicativo, que monitora valores de criptoativos, como bitcoin. “O irmão de um amigo fez o escaneamento no final de 2023 e, em dezembro do ano passado, conseguiu sacar R$ 6 mil”, contou.

A valorização da World Coin não aconteceu em dezembro do ano passado, mas em meados de abril de 2024. O valor da moeda digital foi de US$ 2,12 para US$ 11,72 e logo voltou para a casa dos US 2,15, onde está atualmente.

Os amigos e colegas de trabalho, Michel Santos, de 32 anos e Alexandre Ramos, de 37, acompanharam Eduardo, mas decidiram não entrar. Com muito mais dúvidas do que respostas, os dois estavam curiosos para ver a movimentação e as filas. “Na tecnologia eu até acredito. Mas não acredito em ganhar dinheiro de graça, não”, disse Michel, com os braços cruzados. 

DINHEIRO NA MÃO…

“Já estou com 50 anos, tenho o quê? Mais 20 anos de vida? Até isso aí [impacto da cripto] me pegar, eu já nem vou estar aqui”, disse José*, do lado de fora de um dos espaços da World Coin. Vestido com camiseta vermelha e jeans escuro, ele checava a tela do celular, esperando pelo depósito das primeiras criptomoedas.

Um amigo próximo investe em bitcoins, mas ele mesmo nunca chegou perto de uma e-wallet. Diz que nunca teve moedas digitais, até ser informado por um colega de trabalho sobre a “oportunidade” com a World Coin. Poucas pessoas com quem a reportagem conversou conheciam criptomoedas. 

No mundo cripto, a estratégia usada pela World Coin tem nome: “airdrop”.  É uma distribuição de tokens ou criptomoedas gratuitas para usuários como forma de atrair interesse, gerar engajamento e criar liquidez para o ativo cripto.  

Segundo o professor da USP Marcos Simplício, uma foto de alta resolução do olho pode se passar pela íris da pessoa.

Em setembro de 2024, o CEO da Tools for Humanity, Alex Blania disse que o principal objetivo do projeto era ganhar escala. “Tudo o que nos importa neste momento é a distribuição ao redor do mundo e aumentar a quantidade de usuários verificados que usam o serviço”.

A World não chama a troca de dados por criptomoeda de “venda”. “Não é feito um pagamento. Os usuários que verificam sua humanidade podem escolher serem recompensados com unidades de um token. A finalidade dessa distribuição é dar a posse da rede aos próprios usuários. Boa parte dos usuários, em vez de manter o token, prefere convertê-lo", explica Tozzi.

Nas redes sociais, usuários inflam a curiosidade dos outros usando a expressão. Pelo menos 10 pessoas entrevistadas nesses espaços confirmaram que chegaram ali por conta do TikTok. 

PRIVACIDADE E HUMANIDADE

Elisa Martins*, de 20 anos, entrou na sala de captação com um bebê de um mês no colo. A jovem mãe, de 20 anos, escaneou sua íris em companhia do marido e de um amigo da família. Todos na mesma faixa etária. Desempregada, ela procura renda para cuidar da família.

Superconectada ao celular e às redes sociais, Elisa diz entender de tecnologia e ensaia falar sobre as vezes que já compartilhou informações no Instagram sem receber nada além de publicidade em troca. 

Todas as pessoas entrevistadas tinham um ponto em comum: queriam proteger a privacidade. A maioria pediu para não ser identificada pelo nome, com medo de exposição. 

Marieta*, de 30 anos, com o uniforme da empresa em que trabalha, explica que usou o horário do almoço para ir até a loja da World. Quando a pergunta é sobre a preocupação com os dados divididos com o projeto de identificação, ela diz que era só a imagem da íris, e não o número de CPF ou o nome completo.

Outros disseram que a privacidade não seria exposta, uma vez que a World não mantinha as fotos. Nos panfletos da World, está escrito que “as imagens originais da sua íris serão encriptadas de ponta-a-ponta, enviadas para o seu celular e automaticamente excluídas do Orb”. Tal informação é repetida no curto vídeo de apresentação. 

O fato de o sistema descartar as fotos não significa que o dado de identidade biométrica foi deletado. A rigor, nenhuma empresa que usa identificação biométrica mantém as captações brutas, mas se cria um perfil a partir das imagens.

“Não ficar com a foto não é prova de muita coisa. Eles já captaram o perfil biométrico. É o perfil que importa para a identificação”, explica Simplício. 

* Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais