Se você pensa que e-book é livro – você está certo, mas é só o começo…
“Não contem com o fim do livro”. Este foi o título de um livro do semiólogo Umberto Eco e do escritor e cineasta Jean Claude-Carrière, lançado em 2010, quando os prognósticos para o objeto que nasceu a partir da invenção do alemão Johannes Gutenberg parecia, assim como os jornais e revistas, estar com os dias contados.
O mundo girou e a lusitana rodou nesses 11 anos. As redes sociais ascenderam e se consolidaram como meios para o debate público, a linguagem jornalística implodiu em múltiplos formatos, sobretudo em vídeo e podcast, mas nem o jornal deixou de passar por debaixo da porta nem os livros de se acomodar debaixo dos braços dos consumidores.
Isso não quer, todavia, que não haja espaço para novas ideias em um setor que se vê confrontado com as diversas formas de entretenimento – das séries disponíveis no streaming às diversas possibilidades oferecidas pelo celular – e pela ascensão global de gigantes como a Amazon, que tem lançado desafios para editores e livreiros.
Diante desse cenário, como prender uma pessoa diante de um livro, sobretudo uma criança, que não conhece – nem conhecerá – outro mundo além deste, em que o real e o digital se imbricam?
Foi com essa proposta que surgiu a Nextale, um aplicativo apenas para celular – tanto Android quanto Iphone – que se vale dos meios tecnológicos disponíveis – como o áudio e a animação – para dialogar com o leitor do século 21.
“Nossa proposta sempre foi criar uma alternativa ao e-book, um livro digital de verdade. A gente tentou entender o que o livro digital tinha que ter para poder resgatar a sensação que as pessoas tinham quando liam um livro de papel no início do século passado. O que a gente precisava entender era como levar a imersão para o livro digital. Quais as sensações que esse livro deve despertar? Como trabalhar com imersão num aparelho contra-imersivo [o celular]?”, explica Priscila Mana Vaz, cofundadora e CEO da Nextale.
O protótipo dessa experiência foi o conto “Chapeuzinho Vermelho”, de Charles Perrault. Inicialmente, Vaz e seu sócio, Rafael Santos Silva, acreditavam que as ilustrações e animações seriam o principal atrativo para os leitores. Mas o retorno dos usuários trouxe uma surpresa. “A gente foi entendendo que o som tem um peso muito maior que as imagens como elemento de ampliação da imaginação. Vários usuários descreviam ter visto coisas que não estavam imaginadas. Alguns leitores diziam: ‘Eu vi a porta abrindo’. E só tinha o som [da porta abrindo].” (Curioso que muitas pessoas que assistiram “Bambi”, o clássico da Disney, juram ter visto a mãe do pequeno cervo ser assassinada. E só o que há é o som do tiro.)
O projeto inicial era lançar uma biblioteca com clássicos infantis para serem comercializados por meio de assinatura. A ideia, porém, fora adiada. “A gente entendeu que esse produto ainda não está pronto para o mercado”, conta Vaz.
No lugar, a Nextale começou a trabalhar com “cardbooks”, com histórias do folclore brasileiro acompanhadas por sons e ilustrações. Para reter os leitores, foram criados meios interativos e jogos, que surtiram efeito. “Os usuários liam em 15 dias dois livros e meio”, conta. (Não se assuste: este é o equivalente à média brasileira em 12 meses.)
Os “cardbooks” foram adotados recentemente pela Positivo, num programa de apoio aos estudantes em relação à Língua Portuguesa. Eles também foram utilizados por escolas no período da pandemia, atendendo a 20 mil alunos. A Nextale pretende comercializar seus conteúdos junto às escolas.
QUEM PAGA A CONTA?
O retorno da experiência dos leitores foi fundamental para a Nextale definir seus custos. Hoje, os livros se dividem em três partes equivalentes: texto, ilustração e som. “O maior custo é animação e ilustração, mas como esses elementos têm um peso menor [do que o imaginado inicialmente], a conta fechou”, explica.
Os livros são feitos a partir de uma biblioteca de efeitos tecnológicos, utilizada conforme cada obra. “A gente só precisa saber o que a narrativa manda. O texto manda na nossa inovação. O objetivo sempre é a leitura”, conta.
Criada em 2017, a Nextale precisou “furar a bolha” para conseguir financiamento. “Quando você [o mercado] se depara com um produto inovador tem muito pouco investidor. É difícil se você não tem pai rico. Os primeiros investimentos foram muito difíceis porque as pessoas não querem investir em produtos que têm dificuldade de escala e o livro sempre vai ter dificuldade de escala.”
Vaz afirma que o apoio de editais públicos, como da Faperj e da prefeitura de Macaé, foi fundamental para a empresa, cuja história está ligada à sua pesquisa no doutorado. “A gente não existiria se não fossem os fomentos públicos”, diz. A empresa, que tem fins lucrativos, já captou quase 500 mil reais, também junto à iniciativa privada, e vai ingressar numa nova rodada de captação. Hoje, a Nextale tem seis pessoas trabalhando, incluindo Vaz e seu sócio, Rafael Santos Silva, cofundador e primeiro idealizador do produto.
LEITURA ELÁSTICA
Na Janela Livraria, localizada no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio de Janeiro, a livreira Martha Ribas, uma das sócias do estabelecimento, conversou com um pai aflito pelo fato de sua filha estar muito focada no celular – e alheia à leitura. Ribas, que também é editora, indicou-lhe um livro de sua leva. Trata-se do “ZAP do Olimpo”, de Carolina Sanches e Ricardo Leite, que une deuses, heróis e monstros da mitologia grega numa conversa em diferentes grupos de WhatsApp.
Quem pensa, porém, que o diálogo entre o livro e o acelerado mundo virtual se dá apenas na transposição deste para o papel se engana. “ZAP do Olimpo” é “um livro que vai além do livro”, como o define sua editora. Além da obra impressa e ilustrada, no formato “gutenberguiano”, há outros conteúdos. As conversas em WhatsApp entre os deuses, podem, por exemplo, ser ouvidas na sua página no site da Mapa Lab, agência que parte dos livros para criar uma cadeia multiplataforma em torno dele. Como no caso de “ZAP do Olimpo”, os livros da Mapa Lab podem ser desmembrados em jogos, sticks, bastidores e muitos outros conteúdos.
“A tecnologia é uma aliada [do livro]. Quero que as pessoas aproveitem, que isso renda, que seja motivo de encontro, troca, reflexão”, afirma Ribas.
A Mapa Lab, criada em 2019, trabalha com o conceito de “Leituras elásticas”, criada por Carolina Sanches, que trata, precisamente, de expandir a experiência do leitor para outras linguagens, produtos e experiências.
NOVOS MARCOS
Ao contrário do restante do setor, a Mapa Lab não trabalha com um modelo de negócios. Mas com vários. Nela, os livros não são trabalhados de acordo com a estratégia da editora. Cada um tem sua própria estratégia de comercialização, definida conforme seu conteúdo e o que ele pode gerar. “Estou buscando outros modelos de fazer livros, outras formas de financiamento, pensando nessa ideia de comunidade [em torno do livro]”, conta.
Foi a partir da ideia de comunidade que nasceu o título de maior sucesso da editora, “Outro patamar”, de Téo Benjamin, sobre a ascensão do Flamengo a partir de 2019. O livro foi bancado a partir de financiamento coletivo e contou com o forte engajamento da torcida rubro-negra – com a qual Benjamin se relacionava por meio do Twitter, onde tinha, à época, 30 mil seguidores. Hoje tem mais que o dobro. Foi justamente a partir dos tuítes do torcedor que nasceu o conteúdo do livro, ideia de Ribas (também ela flamenguista), que já vendeu quase 10 mil exemplares.
O sucesso de “Outro patamar” tem ajudado a Mapa Lab, que optou por não ter um investidor, a desenvolver outros projetos. Os livros da editora não são distribuídos para o varejo nem consignados, sendo vendidos apenas em seu site. A estratégia de venda direta, aliás, tem sido fundamental para as pequenas casas editoriais brasileiras.
O próximo lançamento da editora, o romance “As maiores novidades: uma viagem no tempo”, ficção científica ambientada no mundo corporativo, do escritor e editor Marcelo Ferroni, terá conteúdo em podcast, em conto, além de interações pelo Twitter. Nos três casos em diálogo com a narrativa original. Um lançamento recente, Jornada da Calma, da jornalista Helena Galante, partiu do podcast homônimo que a editora descobriu durante a pandemia e achou que daria um livro.
“Quero fazer outro modelo de negócios, que a gente ajude a pensar o autor, mas pensar em conjunto com ele e construir uma parceria mais longeva. A gente não tem que ser refém da produtividade, a gente pode viver de outra maneira”, afirma Ribas.