“Sem confiança entre humanos, a IA refletirá nossos piores instintos”, diz Yuval Harari a líderes em SP

Filósofo e historiador apela à humanidade e reforça o poder da conexão entre pessoas em um mundo à beira de ser dominado por máquinas.

“Sem confiança entre humanos, a IA refletirá nossos piores instintos”, diz Yuval Harari a líderes em SP
Créditos: wildpixel via Getty images

Camila de Lira 6 minutos de leitura

É na confiança entre pessoas, não nos algoritmos, que vive o futuro da humanidade. Para Yuval Noah Harari, a batalha pelo que nos conecta uns com os outros é a verdadeira guerra que irá definir o século 21. Em São Paulo, o historiador e filósofo afirmou que, se líderes e inovadores não conseguirem reconstruir a confiança em um mundo cada vez mais fragmentado, as máquinas herdarão exatamente a lógica de desconfiança, mentira e competição que domina a política e os negócios hoje.

Harari participou do lançamento do São Paulo Beyond Business (SP2B), festival que acontecerá em 2026 no Parque Ibirapuera. Conhecido por best-sellers como Sapiens e Homo Deus, o autor é um dos pensadores globais mais influentes quando o assunto é tecnologia e futuro. No palco, trouxe duas imagens para explicar o momento atual: a IA como inteligência alienígena e como filha da humanidade.

IA: INTELIGÊNCIA ALIENÍGENA

“IA não significa automação. IA significa agência”, afirmou. Para ele, não basta que uma máquina execute uma tarefa sozinha: para ser considerada inteligência artificial, ela precisa ser capaz de aprender, decidir e até inventar ideias novas por conta própria. A invenção, nesse caso, escapa da lógica humana. 

Em fala hipnotizante, Harari disse que erramos ao chamar o “A” da IA de “artificial”, já que sugere que é algo controlado por humanos, o que não é o caso.“Talvez seja mais correto pensar a IA como uma inteligência alienígena. Não porque venha do espaço, mas porque não é humana nem orgânica. Ela opera segundo uma lógica completamente diferente da nossa”, disse.

O exemplo clássico é o AlphaGo, que derrotou o campeão mundial de Go em 2016. A vitória não surpreendeu apenas pelo poder de cálculo, mas porque o algoritmo inventou estratégias inéditas em milhares de anos de história do jogo. Esse é o tipo de raciocínio “alienígena” que, segundo Harari, logo será aplicado a esferas muito mais complexas do que jogos de tabuleiro.

Nas finanças, por exemplo, ele lembrou que a crise de 2008 foi causada por instrumentos como os CDOs, tão intrincados que políticos e reguladores não conseguiam compreender. “Agora imaginem o que acontece quando deixamos que IAs inventem mecanismos financeiros ainda mais complexos, impossíveis de entender para qualquer humano”, provocou. Nesse cenário, a política pode se tornar impotente diante de sistemas que ninguém é capaz de decifrar.

FILHA DA HUMANIDADE?

Se a metáfora da inteligência alienígena revela o quanto a IA pode nos surpreender com lógicas próprias e incompreensíveis, a segunda imagem usada por Harari aponta para outro dilema: a tecnologia também carrega nossas marcas. Para ele, a IA é o filho comum da humanidade e, como qualquer criança, aprende mais com o exemplo do que com o discurso.

“Se dizemos a uma criança para não mentir, mas ela nos vê mentindo, ela também vai mentir. Se pedimos compaixão, mas perseguimos poder sem limites, ela crescerá sem compaixão. O mesmo acontecerá com a IA”, afirmou.

Harari lembrou que, ao contrário de outras tecnologias, a inteligência artificial não apenas executa ordens, mas observa padrões humanos e os replica. Isso significa que a forma como líderes, governos e empresas se relacionam hoje servirá de modelo para aquilo que as máquinas vão reproduzir no futuro.

E, se o modelo atual de uma sociedade que busca por poder acima de tudo, Harari logo avisa: “seremos escravizados e dominados pela IA em pouco tempo”. “A IA é o filho da humanidade, e somos uma família disfuncional”, ele falou.

CONEXÕES E CONFIANÇA ANTES DA SUPERINTELIGÊNCIA

É nesse ponto que ele coloca as lideranças no centro da discussão. Harari chamou atenção para o paradoxo que atravessa a corrida tecnológica: os executivos e governos que dizem não confiar em seus concorrentes humanos são os mesmos que acreditam poder confiar em superinteligências.

Para ele, essa lógica expõe um erro grave de avaliação. Com os humanos, já acumulamos séculos de experiência sobre os mecanismos de confiança e desconfiança. Sabemos que as pessoas mentem, manipulam e buscam poder — mas também conhecemos as formas de conter esses impulsos e criar sistemas de cooperação em larga escala. Com as inteligências artificiais, não temos esse repertório. “É por isso que precisamos primeiro resolver o problema da confiança entre humanos, e só então desenvolver superinteligências”, disse.

Se a IA é filha da humanidade, serão as práticas das lideranças, e não seus discursos, que irão moldar o futuro das máquinas

O recado direto a líderes e inovadores foi claro: não se trata apenas de acelerar a corrida tecnológica, mas de decidir que tipo de exemplo estamos dando. Se a IA é filha da humanidade, serão as práticas das lideranças, e não seus discursos, que irão moldar o futuro das máquinas.

Na reta final da palestra, Harari reforçou que a corrida pela inteligência artificial não pode ser guiada apenas pela busca de poder. “O poder não traz felicidade. A inteligência não garante sabedoria”, afirmou. Para ele, o verdadeiro desafio das próximas décadas não é criar máquinas mais fortes ou mais rápidas, mas desenvolver a capacidade humana de usá-las de forma coletiva e responsável.

SP2B (O QUASE SXSP)

O alerta ecoa no momento em que São Paulo se prepara para sediar o São Paulo Beyond Business (SP2B), em 2026, no Parque Ibirapuera. O festival era uma tentativa de trazer o South by Southwest para a América Latina e acabou se tornando uma versão própria do evento que abala Austin todo ano. O festival nasceu da tentativa de trazer o SXSW para a América Latina e se transformou em uma versão própria, com DNA brasileiro.

Na Première Edition, que aconteceu neste domingo no Auditório Ibirapuera, nomes como Harari, Hugh Forrest, ex-diretor de programação do SXSW e agora parte da curadoria do evento e Gilberto Gil deram o tom do que vem pela frente. O megaevento de 2026 promete ocupar todo o parque, com mais de 750 painéis, 20 palcos, mil horas de conteúdo e dois mil palestrantes, reunindo temas que vão da tecnologia à gastronomia, da música ao futuro das cidades.

Segundo Rafael Lazarini, fundador do SP2B, a proposta é romper a lógica tradicional das conferências de negócios e colocar o ser humano no centro da conversa. A aposta é transformar São Paulo em uma vitrine global de criatividade, inovação e impacto social.

Ao abrir essa jornada com a fala de Yuval Noah Harari, o festival mostrou o tom que pretende imprimir: mais do que discutir tecnologia, o SP2B quer provocar líderes e inovadores a pensar sobre os valores que vão sustentar o futuro. E, como lembrou o filósofo, nenhum deles é mais urgente do que a confiança.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais