Sobre flores e dados

A visualização de dados tem de ser organizada porque o mundo é caótico. E tem de ser fascinante porque o mundo é fascinante

Crédito: Negative Space/ Pexels

Guido Sarti 6 minutos de leitura

Organizar o caos do mundo: essa me parece a principal missão da visualização de dados. Uma vez organizado, o que era caótico agora passa a ser cristalino, revelando aspectos que tornam dados tão interessantes e vigorosos quanto uma guerra napoleônica, a evolução do peso do cérebro dos animais ou um surto de cólera na Londres do século 19.

Aqui me utilizo de “fascinante” no sentido de ser elaborado, uma oportunidade de analisar e aprender. Não tem nada de legal em uma guerra ou no surto de uma doença. 

Mas sejamos sinceros: é ambicioso o objetivo do profissional de dados. Ambicioso e difícil de ser atingido logo de cara, especialmente dentro das próprias agências de publicidade.   

O profissional de BI (inteligência de negócios) trabalha com números. Evidentemente que não é uma regra, mas a gente sabe que muitas das pessoas que trabalham com publicidade não são exatamente fãs de exatas. Isso significa que despejar um monte de números em uma mesa não te faz necessariamente um bom profissional de BI.

Por mais interessantes que sejam os insights que revelam, dados podem ser um assunto chato e monótono.

Por mais que esses números revelem insights maravilhosos ou simplesmente úteis, eles só valem se forem compreendidos. Compreensão e comunicação dividem o mesmo prefixo de comunidade – isso porque uma coisa só passa a ser compreendida ou comunicada quando está inserida dentro de uma comunidade, ainda que de dois. 

Como fazer uma pessoa que não gosta de números se interessar por dados? A resposta pode estar justamente nesse exemplo “comunicação/ compreensão/ comunidade”.

Crédito: Pixabay

Pessoas que não se interessam por linguística ou gramática – que jamais fariam uma faculdade de Letras, por exemplo – gostam de saber a origem das palavras. Gostam de saber que a palavra “azar” significa flor em árabe (az-zahr) porque, em um antigo jogo árabe, se pintava uma flor em uma das faces do dado.

Eu não faria uma faculdade de Letras, mas gosto de saber que comunicação, comunidade e compreensão começam do mesmo jeito porque “com” significa “junto” em latim. E em português também, se você parar para pensar no propósito da preposição “com” em nosso idioma. 

Pessoas gostam de etimologia porque gostam de histórias. E, beleza, já sabemos que contar histórias é importante para

quando tiramos o dado do laboratório e o recolocamos no fascinante e complexo mundo tridimensional, ele ganha vida novamente.

comunicação. Mas o que isso tem a ver com dados? A resposta passa obrigatoriamente por Edward Tufte, um homem cujo ofício é descobrir “como raciocinar sobre a informação”, para usar uma definição que ele próprio gosta de dar.

Estatístico, cientista e designer gráfico, Tufte é conhecido por ter ajudado organizações como NASA e IBM a solucionarem problemas por meio da visualização de dados.

Munido de tabelas, gráficos e mapas, ele é um mestre em transformar oceanos de informação em um parque aquático com piscinas elegantemente distribuídas. Sua obra "The Visual Display of Quantitative Information", de 1983, é o livro sagrado da visualização de dados. 

Vou citar rapidamente três casos ligados a Tufte: duas visualizações de dados que ele admirava e uma terceira que ele refez. 

A DERROTA DE NAPOLEÃO, DESENHADA

Segundo Tufte, um exemplo clássico de visualização de dados bem-sucedida é o gráfico sobre a derrota da campanha russa de Napoleão, feito pelo engenheiro francês Charles Joseph Minard em 1861.

O infográfico, hoje considerado um dos primeiros da história, informa o tamanho decrescente do exército, sua localização geográfica diária, a direção de sua rota, a passagem do tempo e a queda gradual da temperatura.

O que impressionava Tufte era como uma superfície bidimensional era capaz de ser integrada na arquitetura gráfica ”de maneira tão suave e discreta que os espectadores mal percebem que estão observando um mundo de quatro ou cinco dimensões".

Crédito: Wikimedia Commons

RELEITURA DE DADOS CIENTÍFICOS

O segundo exemplo trazido por Tufte é o redesign que ele fez de um gráfico do astrônomo norte-americano, Carl Sagan. O conteúdo original traz dados interessantíssimos sobre a evolução, mas a visualização é bem menos interessante, a ponto de dificultar sua interpretação. Um exemplo bastante palpável de como o dado em si tem pouco poder se ele for pobremente expressado.

A releitura de Tufte é mais precisa e mais divertida. Mas a sua principal qualidade é dar vida e nitidez aos dados, facilitando a compreensão não só da informação, mas também do contexto geral. Informação se transformando em conhecimento bem diante dos nossos olhos.

Gráfico original de Carl Sagan (Reprodução)

Releitura de Tufte (Crédito: Reprodução/ Edward Tufte)

Por mais interessantes que sejam os insights que revelam, dados podem ser um assunto chato e monótono. Isso se for apresentado como algo separado do mundo, isolado em uma câmara hermeticamente fechada, uma substância inodora e asséptica, manipulada por mãos dentro de luvas e iluminada por luz branca.

Quando tiramos o dado do mundo binário e bidimensional das planilhas e telas, quando tiramos o dado do laboratório e o recolocamos no fascinante e complexo mundo tridimensional, ele ganha vida novamente.    

No final do dia, o profissional de BI tem de ser um pouco arquiteto e um pouco tradutor.

Como fazer uma pessoa que não gosta de números se interessar por dados?

Aliás, essa discussão não pode ignorar que muito do pavor em torno das ciências exatas tem a ver com as próprias escolas, cujo esforço para vincular a matemática da sala de aula com o mundo real nunca foi além de cômicas fábulas sobre o exagero humano, no melhor estilo “Joãozinho comprou 55 melancias na feira e agora tem que dividir com seus sete irmãos”.

O papel do profissional de BI é pegar a mão do professor de física e a mão do professor de educação física e descer até a quadra para demonstrar o comportamento das parábolas durante uma partida de vôlei.

O PODER DE UM MAPA

Se alguém ainda duvida do poder da visualização de dados, vale lembrar o terceiro caso que encanta a Tufte, a mim e, francamente, imagino que a qualquer um que conheça essa história. O mapa do surto de cólera de Londres em 1854, feito por John Snow.

Crédito: Wikimedia Commons

Ao rastrear – rua por rua, de maneira nítida e elegante – as mortes pela doença, seu mapa revelava que o responsável pelo surto era a água que saía da bomba de Broad Street. Após a publicação do mapa, a bomba da rua foi desativada e o número de mortes diminuiu drasticamente, encerrando o surto e dando início à epidemiologia moderna.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais