Virada em Paris expôs nossa dependência digital. 2024 será o ano do detox?

Foto de multidão usando o celular para filmar a queima de fogos do Arco do Triunfo é um retrato simbólico da sociedade algoritmizada e hiperconectada

Créditos: Nik Shuliahin/ Unsplash/ Jun/ iStock

Camila de Lira 5 minutos de leitura

Fogos de artifício se espalham pelo céu de Paris enquanto um jogo de luzes ilumina o Arco do Triunfo. O Ano Novo na capital francesa foi um espetáculo para os olhos.

Ou melhor, para as câmeras dos celulares, como mostrou o impactante vídeo do réveillon parisiense que viralizou nas redes sociais.

Na imagem, a multidão que acompanha a festa não olha para os fogos, mas para as telas de seus celulares, enquanto grava o espetáculo. Não há uma pessoa que não esteja com o smartphone apontado para o alto. É um retrato claro e incômodo daquilo que se vê no dia a dia: o celular tomou conta da nossa atenção e dos nossos olhares.

Crédito: Reprodução/ TikTok

“O elefante não está mais na sala, está dormindo na nossa cama. Essa foto é um retrato da realidade. O celular virou uma arma de desatenção em massa”, afirma Genesson Honorato, especialista em RH, professor, palestrante e pesquisador. Para ele, não dá mais para escapar da discussão sobre o impacto das telas na cognição humana.

Pesquisadores da Universidade da Califórnia mostraram que o tempo médio de atenção das pessoas despencou de 2,5 minutos em 2003 para 47 segundos em 2019. A época coincide com a popularização do uso da internet móvel no mundo.

Para alguns especialistas, os fatos se conectam, já que, na competição pela atenção humana, a tecnologia que muda com rapidez vertiginosa ganha do milenar cérebro humano.

O celular rouba a nossa atenção. Não estamos prestando atenção no que está sendo visto, mas se o enquadramento está bom.

Na opinião da artista, pesquisadora e professora da Universidade de São Paulo Giselle Beiguelman, a cena vista em Paris e replicada pelo mundo reforça a teoria de que o celular virou o “terceiro olho” humano. Capaz de captar, compartilhar e guardar imagens, o dispositivo está também se tornando a “segunda memória” de muitos. 

“A foto é muito emblemática, porque mostra a transformação da nossa experiência das coisas, da nossa capacidade de memorizar. Na imagem, o celular parece uma membrana que divide o sujeito e o vivido. Um terceiro olho que está se transformando num cérebro próprio”, diz Giselle.

“As pessoas estão ali ao vivo, mas estão olhando para a tela”, complementa Honorato. “O celular rouba a nossa atenção, a nossa presença. Não estamos prestando atenção no que está sendo visto, mas se o enquadramento está bom.”

POSE PARA POSTAR

Em algumas telas retratadas no vídeo, é possível ver ícones de redes sociais. Provavelmente, algumas pessoas estavam postando o show para seus amigos e seguidores.

Até a forma com que o vídeo viralizou – graça a uma postagem no X/ Twitter que foi replicada no TikTok – mostra que as redes sociais e o smartphone andam juntos quando o assunto é roubar a atenção.

Construídas a partir de métricas de visualização e tempo médio do usuário, as redes sociais estimularam o compartilhamento de imagens e vídeos. A barra de rolagem infinita, as gratificações por curtidas e as timelines por assunto são exemplos de mudanças que as redes promoveram ao longo do tempo para manter as pessoas conectadas e logadas.

Segundo a pesquisadora Issaaf Karhawi, as redes exacerbaram o “imperativo da visibilidade”. “É como se as experiências só fossem validadas pelo olhar do outro, pela visibilidade de si. E como se cria essa visibilidade? Nas redes sociais. As relações passam pela mediação das imagens o tempo inteiro”, explica a pesquisadora.

a cena vista em Paris e replicada pelo mundo reforça a teoria de que o celular virou o “terceiro olho” humano.

Giselle, que recentemente publicou o livro “Políticas da Imagem - Vigilância e Resistência na Dadosfera”, afirma que as redes sociais mudaram a maneira como capturamos as imagens. Agora elas são feitas a partir de ângulos ou em momentos específicos para postar ou para criar colagens de publicações que podem se tornar virais.

Nesse momento, a câmera aponta para a própria criação da foto que viralizou. Afinal, o usuário postou sabendo que aquele tipo de mensagem seria compartilhado por muita gente. “Não basta saber se fica boa a imagem, mas como ela vai circular, como ela vai ser midiatizada”, diz Giselle.

Este componente, segundo Honorato, “rouba” a presença. Enquanto o celular distrai, as redes sociais transportam a pessoa para outro espaço, o digital. Um espaço no qual o número de curtidas e visualizações importa tanto quanto o lugar onde a pessoa está. E onde mostrar que viveu uma experiência é mais importante do que, de fato, desfrutá-la ao vivo e a cores. “O metaverso já existe”, afirma.

ESPAÇOS SMARTPHONE FREE

Além da profusão de telas, o que chama atenção no vídeo do Ano Novo em Paris é que as pessoas não estão estourando champanhe, se abraçando ou falando umas com as outras. Estão todos vidrados na tela. “Essa imagem materializa questões de sociabilidade do nosso tempo”, diz Issaaf.

A fundadora do Instituto Delete (que prega o uso consciente da tecnologia), Anna Lucia Spear King, aponta que ainda estamos em um momento de “educação” para o uso de celulares em público.

“As pessoas se sentem tão seduzidas pelo aparelho, pela praticidade, pela mobilidade, pelas possibilidades que esquecem que não dá para usar o celular a qualquer hora, em qualquer lugar e em qualquer situação”, diz Anna Lucia, que é psicóloga e professora da pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Crédito: Yondr

Uma forma de incentivar o uso consciente da tecnologia seria estabelecer a proibição do uso de celulares em determinados espaços. Escolas pelo mundo inteiro estão fazendo isso. Alguns artistas, como Roger Waters e Maddonna, já pedem para que os espectadores “sintam o momento” e não filmem seus shows.

Existe ainda uma onda de tecnologia anti-celular, como as pochetes da marca Yondr, que limitam a utilização do aparelho em lugares delimitados, criando áreas específicas onde se pode usá-lo – a exemplo das áreas de fumantes.

Por fim, o vídeo guarda uma resolução para o ano que começa: será que não podemos desconectar um pouco das telas em 2024?


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais