Você deixaria um vendedor te perseguir como um anúncio no Instagram?
Na história em quadrinhos "Algorithmic Reality", o leitor é colocado diante de perguntas como essa
Imagine a seguinte cena: você entra em uma sapataria e experimenta um par de tênis da Nike. O vendedor fala sobre como aquele modelo é ótimo, mas você ainda não tem certeza e resolve sair sem comprar. Algum tempo depois, esse mesmo vendedor aparece do nada no supermercado. "E aí, você já se decidiu sobre o tênis?", ele pergunta. "Tenho uma foto dele aqui."
Você ri da situação e vai embora de novo, mas o vendedor continua voltando. Você esbarra com ele na calçada ou na loja de material de construção. Ele entra até na sua casa e te encontra no sofá da sala. "Adoraria sugerir alguns outros sapatos que você provavelmente vai gostar, com base em sua ida à loja", diz o sujeito.
Essa situação bizarra compõe o capítulo de abertura de uma nova história em quadrinhos de autoria do cofundador do WeTransfer, Damian Bradfield, e do ilustrador espanhol David Sánchez. Já disponível para venda, "Algorithmic Reality" (Realidade Algorítmica) é um alerta contra a influência perniciosa das big techs e o imediatismo da tecnologia.
No capítulo de abertura, Bradfield transpõe os absurdos do marketing online e os anúncios direcionados para o dia a dia no mundo real. Ao confundir essas fronteiras – entre os mundos online e off-line –, o autor nos incita a considerar por que, no mundo digital, somos mais propensos a aceitar aquilo que pode parecer antiético na vida real.
Ao longo do livro, Bradfield e Sánchez pintam um retrato semelhante aos da série "Black Mirror", de uma sociedade que está em tensão com a tecnologia. As marcas estão nos perseguindo; as seguradoras, exigindo que troquemos nossa privacidade por apólices mais baratas; e os supermercados estão lotados de “personal shoppers” empregados por uma certa empresa chamada “Amazin”.
Bradfield poderia ter trabalhado essas mesmas ideias escrevendo um romance normal, mas a narrativa se torna ainda mais poderosa pelo estilo austero das ilustrações de Sánchez, onde a apatia dos personagens assume uma forma visual.
"Existe uma frieza que transmite essa dura realidade e que senti que era adequada ao enredo", diz o autor. Ironicamente, a dupla desenvolveu o livro inteiramente por meio de mensagens de WhatsApp, sem nunca se falar ao telefone.
Em um capítulo, acompanhamos um ludista enquanto ele navega por um mundo onde os discos de vinil caíram no esquecimento e os pagamentos em dinheiro são proibidos. O personagem é baseado em um amigo de Bradfield que é "100% essa pessoa". A história termina com o homem sendo preso por evasão de dados.
É uma visão distópica, mas para Bradfield, “tudo isso já está acontecendo agora”. Ele faz referência ao sobrinho, que acabou de tirar a carteira de motorista. "O preço do seguro dele está nas alturas, mas, se quiser reduzir o custo, ele pode instalar uma caixa preta no carro e permitir que eles possam rastreá-lo o tempo todo para ver como está dirigindo."
O livro termina com um grupo de turistas visitando uma cidade do Vale do Silício, outrora próspera com empresas de tecnologia e agora repleta de fantasmas. No final, observam o céu noturno com óculos de realidade virtual. O detalhe é que as pessoas não estão maravilhadas com as estrelas, mas com uma constelação de satélites. As últimas vinhetas mostram uma bandeira da Amazon – ou melhor, da Amazin – plantada em Marte.
A coisa toda soa um pouco satírica, claro. O romance é mais um sinal de alerta para o que pode acontecer se não mudarmos nosso relacionamento com a tecnologia.
“Estamos vendo o mundo ser dominado por corporações que nem sempre compartilham os mesmos valores que nós”, diz Bradfield. "É bem provável que algumas dessas grandes empresas estejam avançando para a Lua, Marte, o sistema solar – e tirando proveito disso. Vamos assistir a isso acontecendo e depois fingir que estamos surpresos por não termos previsto.”
Crédito das imagens: Damian Bradfield/ David Sánchez/ cortesia NBM Graphic Novels