Como ficam as crianças que têm suas vidas expostas pelos pais na internet?

Nos EUA, legislação começa a estabelecer limites a um tipo de trabalho infantil que tem sido amplamente ignorado

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Jessica Maddox 5 minutos de leitura

Ruby Franke já foi uma das vlogeiras de família mais populares do YouTube, postando vídeos com seu marido e filhos em seu canal, 8 Passengers, que acumulou mais de um bilhão de visualizações.

Em alguns vídeos, ela mostrava as férias e atividades em família, como pintar juntos. Em outros, detalhava como proibiu seu filho de 16 anos de dormir em seu próprio quarto por sete meses e ameaçava decapitar um bichinho de pelúcia.

Em agosto de 2023, Franke foi acusada de abuso infantil e se declarou culpada quatro meses depois. Embora os crimes que levaram às acusações, como negar água às crianças e algemá-las por longos períodos, não aparecessem no 8 Passengers, seus filhos viam o vlog como parte de um padrão maior de abuso.

Em outubro de 2024, Shari Franke, a filha mais velha de Ruby, de 21 anos, testemunhou para os legisladores do estado de Utah, nos EUA, sobre o que ser uma influenciadora infantil contra sua vontade fez com ela.

“Venho hoje, como uma vítima de um vlog de família, para esclarecer as questões éticas e monetárias que surgem quando se é uma influenciadora infantil”, disse Shari. “Se eu pudesse voltar e fazer tudo de novo, preferiria ter uma conta bancária zerada e não ter minha infância exposta na internet. Nenhum dinheiro faz valer a pena o que vivi.”

Seu testemunho ocorreu apenas algumas semanas depois que a Califórnia aprovou uma lei que obriga que uma parte dos rendimentos do conteúdo de mídia social com menores seja reservada em um fundo para a criança quando ela completar 18 anos.

Passei os últimos dois anos advogando pelas crianças de vlogs de família. Até 18 meses atrás, eu havia escrito sobre a falta de proteções legais para os filhos de influenciadores, mesmo que atores mirins já contassem com regras rígidas para proteger seus ganhos. Agora isso está começando a mudar.

NOVAS LEIS PARA UMA NOVA ERA

Algumas crianças destacadas no conteúdo de mídia social dos pais se tornam virais ainda pequenas; outras têm seu primeiro ciclo menstrual divulgados ao mundo. Ou ainda, podem ser pressionadas pelos pais a serem o talento que sustenta a família financeiramente.

Em agosto de 2023, Illinois se tornou o primeiro estado dos EUA a aprovar uma lei que protege os interesses financeiros dos filhos de vlogeiros de família. A legislação exige que os pais reservem 50% dos ganhos de um conteúdo em que filho apareça e que os recursos sejam depositados em um fundo que a criança possa acessar ao completar 18 anos. Se o dinheiro não estiver lá, eles podem processar os pais.

Vlogs de família acumulam bilhões de visualizações, o que mantém o público no sites que os hospedam.

Minnesota foi o próximo estado a aprovar esse tipo de legislação, em maio de 2024. Esta lei foi além das considerações financeiras, proibindo crianças menores de 14 anos de aparecerem em mais de 30% do conteúdo de mídia social dos pais. Se as crianças aparecerem nesses vídeos e os vídeos forem monetizados, o dinheiro deve ser depositado em uma conta, similar ao de Illinois.

Em dezembro de 2023, consultei legisladores sobre rascunhos da medida da Califórnia. Este projeto de lei, que foi sancionado em setembro de 2024, foi considerado um passo importante na regulamentação do conteúdo de vlogs de família, dado o relacionamento do estado com a indústria do entretenimento.

TRABALHO É TRABALHO

Essas leis não são voltadas para os pais que, vez ou outra, querem compartilhar uma foto do filho no Facebook ou no Instagram. Elas estão colocando limites para uma forma de trabalho infantil que, até recentemente, estava completamente desregulada.

No YouTube, são mais de 500 horas de vídeo carregadas a cada minuto; o TikTok conta com mais de 150 milhões de usuários ativos mensais só nos EUA; já os usuários do Instagram assistem a 17,6 milhões de horas de Reels por dia.

Na última década, entrevistei mais de 150 criadores de conteúdo e influenciadores, e frequentemente os ouço dizer que receberam mais de US$ 8 mil por postagem.

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Os patrocínios de marcas continuam sendo uma área cinzenta nessas leis; a maioria da nova legislação abrange apenas os pagamentos feitos diretamente pelas plataformas. Mas não estamos falando de alguns trocados aqui e ali. Pode ser dinheiro suficiente para sustentar uma família. E é trabalho – para todos os envolvidos.

É importante notar que as crianças não têm como dar consentimento (ou não) para aparecer no conteúdo dos pais. Embora possa parecer divertido aparecer no vídeo da mamãe ou do papai, crianças pequenas não têm noção dos perigos da internet.

Elas não entendem que o conteúdo pode alcançar além do público pretendido. Não entendem que a internet é para sempre – que um dia, quando estiverem se candidatando a um emprego, os resultados de uma busca no Google podem mostrar suas fotos de quando eram bebês.

A RESPONSABILIDADE DAS PLATAFORMAS

As plataformas de mídia social também têm um papel a desempenhar. Se quisessem, poderiam regulamentar ou proibir conteúdo monetizado centrado em crianças.

Dito isso, o conteúdo de vlogs de família é lucrativo para as plataformas: acumula bilhões de visualizações, o que mantém o público por mais tempo no site (YouTube, Instagram etc.). É de se supor que as plataformas nunca interviriam por conta própria se isso arriscasse prejudicar seu lucro.

Mas uma coisa que aprendi ao estudar a governança das plataformas de mídia social é que a opinião pública importa. Em minha pesquisa sobre vlogs de família, testemunhei uma mudança importante na opinião pública nos últimos dois anos, à medida que a imprensa presta mais atenção ao fenômeno, os criadores de conteúdo e o público se tornam mais críticos e os participantes de vlogs de família, agora adultos, contam suas histórias.

Se as plataformas conseguem desenvolver rapidamente suas próprias versões de chatbots de IA, elas podem montar equipes para descobrir como ajudar a regulamentar e fazer cumprir a legislação que protege os interesses das crianças – e têm a oportunidade, na minha opinião, de ficar do lado certo da história.


SOBRE A AUTORA

Jessica Maddox é professora assistente de jornalismo e mídia criativa na Universidade do Alabama. saiba mais