Desistir deve, sim, ser uma opção

Diferente do que a cultura da hiper-produtividade demanda, a renúncia é um ato de coragem, de autoconhecimento e de transformação

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Camila de Lira 7 minutos de leitura

Depois de uma semana no Big Brother Brasil, a influenciadora Vanessa Lopes apertou o botão vermelho. Acionar o dispositivo significa que a pessoa desistiu de participar do reality show. No mesmo minuto, já havia inúmeras postagens dizendo que a garota era um fracasso, pois não tinha aguentado a pressão e não sabia encarar dificuldades.

Na vida real, os botões vermelhos são mais sutis, mas rendem reações parecidas. Quando se fala em vida profissional, então, é ainda pior. No entanto, diferentemente do que dizem as frases feitas do LinkedIn e os discursos prontos dos coaches, desistir não só é uma opção como pode ampliar as possibilidades ao longo da vida.

A ideia é defendida por Adam Phillips, renomado escritor e psicanalista inglês, responsável pela nova tradução das obras de Sigmund Freud. Em seu novo livro, "On Giving Up" (Sobre Desistir), o autor explica que o ato de desistir significa levantar questionamentos sobre os próprios desejos e é essencial para formar um ser humano mais consciente.

"Desistir é uma tentativa de criar um futuro diferente", escreveu Phillips, em texto publicado no The Guardian em 2 de janeiro.

Quando decide deixar algo de lado, o sujeito está indicando qual o seu limite e enxergando suas possibilidades dentro da circunstância apresentada. Abrir mão, afirma Addams, é a forma que o ser humano tem de abraçar quem ele é e deixar de lado as concepções prontas do que ele acha que precisa ser. A desistência pode ser libertadora.

Vanessa Lopes aperta o botão de desistência do BBB (Crédito: Reprodução/ Globo)

Na carreira de quase 40 anos de Deives Rezende, CEO da Conduru Consultoria, o ato de renunciar e deixar de lado teve esse fator de “liberdade”. E, em alguns casos, foi um ato de se posicionar contra a injustiça do próprio sistema.

O executivo, que foi um dos primeiros líderes negros do mercado financeiro brasileiro, conta que deixou um cargo considerado “dos sonhos” em uma grande empresa internacional porque passou por episódios de racismo silencioso. “Existem as desistências que podem até parecer fracasso, mas que acontecem para abrir espaço para algo melhor”, acredita Rezende.

Na visão de Christian Dunker, psicanalista, professor e autor brasileiro, a desistência da qual Phillips fala é exatamente essa: a que abre caminhos. Não é o “jogar tudo para o alto” por conta de um desconforto ou porque algo não aconteceu do jeito esperado. Mas o ato de se questionar para, então, decidir por romper.

Deives Rezende (Crédito: Conduru/ Divulgação)

Dunker indica que, no mundo atual, há ao mesmo tempo facilidade para a desistência rápida e para a persistência tóxica. A desistência “rápida”, diz ele, é aquela feita sem consciência. É quando, por exemplo, alguém deixa de responder mensagens para uma pessoa com quem acabou de sair apenas por ser mais conveniente terminar o relacionamento desta forma.

Do outro lado, a persistência tóxica é um tipo de coerção psíquica, já que a pessoa se vê sem outra opção a não ser “superar seus limites” a qualquer custo. "A super ênfase do ‘não desista’ pode ser entendida como espécie de resposta sintomática a um modo de produção e de consumo que demanda necessariamente mais do que o sujeito pode entregar”, afirma Dunker.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Phillips foi além e chamou a ideia de nunca desistir de “fascista”, já que não oferece caminhos e exige um número infinito de sacrifícios para se atingir o objetivo.

Para Dunker, nas entrelinhas da cultura que valoriza o “nunca desistir” e da sociedade do cansaço está a ideia de que “apenas os heróis sobreviverão”. Como se apenas continuassem aqueles que têm capacidades sobre-humanas de cognição e controle. Um debate que toca também os anseios de que, em algum momento, a inteligência artificial irá substituir a mente humana.

SIMONE BILES: A DESISTÊNCIA VALE OURO

Falando na conexão entre humano e máquina, não é de surpreender que um dos termos mais usados nas listas de qualidades ou de habilidades a se desenvolver seja uma palavra emprestada da física: resiliência, que significa a propriedade que materiais têm de voltar à forma anterior depois de passar por alterações elásticas.

Nos últimos anos, o vocábulo ganhou outro significado e peso: a capacidade das pessoas de se adaptarem a mudanças, principalmente negativas.

Rezende conta que chegou a ver equipes criando nota para a resiliência dos funcionários e empresas que tornaram isso uma meta individualizada. “Ou seja, a pessoa não pode desistir? Ela tem que fazer tudo certo? Ela tem que engolir tudo?”, questiona o executivo.

Adam Phillips (Crédito: Bracha L. Ettinger)

Embutida no conceito de resiliência está a redução da experiência humana a uma dinâmica que apenas objetos podem ter. O plástico pode voltar ao que era antes depois de um trauma. Uma pessoa, não. E isso faz parte do processo de mudar.

“Não poder desistir é não poder permitir a perda, a vulnerabilidade; não poder permitir a passagem do tempo e as revisões que ele traz”, escreveu Phillips, em texto publicado na London Review of Books.

A desistência traz consigo perguntas incômodas. A principal delas é uma que já está sendo feita por cada vez mais profissionais: vale tudo pelo sucesso?

Nenhuma imagem é melhor para esse exemplo do que a da atleta norte-americana Simone Biles. Durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, a ginasta multimedalhista não completou uma das primeiras provas da final. Pesando sua saúde mental e física, fez o impensável: desistiu de participar das finais olímpicas.

no mundo atual, há ao mesmo tempo facilidade para a desistência rápida e para a persistência tóxica.

Pentacampeã mundial de ginástica artística e estrela da Olímpiada do Rio de Janeiro, ela estava no topo. No entanto, passava por um processo complexo de exaustão física e mental, resultado não só dos treinos extensos para a competição como também da investigação do ex-médico da equipe de ginástica feminina dos Estados Unidos Larry Nassar.

Ele foi condenado por abusar sexualmente de 300 meninas ao longo de um período de duas décadas enquanto era médico da equipe. Simone foi, infelizmente, uma de suas vítimas.

Na época da Olímpiada, o caso de Nassar estava sendo rediscutido no Senado norte-americano, uma vez que o médico foi acusado diversas vezes ao longo dos anos, mas a polícia federal dos Estados Unidos não o investigou. Simone era uma das principais atletas a levantar a voz contra o sistema que permitiu que Larry continuasse agindo.

Quando colocada nesta circunstância, muitos se perguntam, na verdade, como a atleta conseguiu chegar à final – ou, até mesmo, como conseguiu continuar no ambiente da ginástica. “A desistência pode ser um não para a situação, mas é um sim para si”, diz Dunker.

Simone Biles (Crédito: Dreamstime)

“Que pessoa corajosa a Simone Biles foi ao se colocar em primeiro lugar”, diz Rezende. Para ele, não há como analisar a dicotomia entre persistência e desistência sem colocar as lentes de raça e gênero.

Para muitos profissionais negros e negras, desistir é uma opção bem longínqua, quase inexistente. Para Rezende, o resultado disso é uma pressão extra para que os profissionais pretos tenham excelência, o que pode levar à exaustão mais rápido.

A desistência traz consigo perguntas incômodas. A principal delas é: vale tudo pelo sucesso?

Passar a ver a desistência não como um fracasso, mas como um processo, pode aliviar este peso, diz Rezende.

Na opinião de Adam Phillips, entender que a desistência não é permanente é uma das formas de ressignificar o ato de renunciar. Uma pessoa deixar algo de lado não significa que não voltará para aquele assunto, mas apenas que, naquela circunstância, não valia a pena insistir.

No caso do BBB Vanessa Lopes aparentava não estar psicologicamente bem. Segundo a equipe da TikToker, desde que saiu da casa, a jovem passou por acompanhamento psiquiátrico e está se recuperando. O botão vermelho não significou o fim, mas o recomeço.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais