Errar é umano

O desafio da IA é conseguir pensar – ou, em última análise, deixar de pensar – como um ser humano

Créditos: Allvisionn/ iStock

Guido Sarti 6 minutos de leitura

É sempre bom duvidar de palavras mágicas. E eu tenho dois problemas com a palavra performance.

O primeiro é que ela não significa o que a gente queria que ela significasse.

O segundo é que mesmo esse sentido que a gente queria que ela tivesse foi completamente sequestrado e nos deixou míopes diante de tanta informação despejada em nossa rotina e nossa retina. Também pudera, nunca foi tão difícil de entender, explicar e definir a realidade, essa mesma realidade que sempre foi sólida, até outro dia era líquida e hoje é gasosa.

Mas, vamos por partes.

Todo mundo que já abriu um dicionário sabe: palavras são feitas de palavras. Enquanto to perform é traduzido como realizar, fazer, efetuar, a definição de desempenho no Houaiss é recheada de palavras como qualidade, capacidade, eficiência.

Performance é atuação. Desempenho é como essa atuação é avaliada em termos de rendimento. Quando dizemos que alguma coisa performou, quase sempre queremos dizer que ela teve um bom desempenho.

Interpretação exige que se leve em conta contradições, e não há nenhum especialista em contradições maior do que nós, humanos.

Mas tudo bem, eu não vou ser o maluco das palavras. Como o nome da modalidade publicitária é Mídia de Performance, vamos todos seguir – aqui e em todos os outros lugares – usando a palavra performance.

Mas performemos, sejamos generosos com a palavra performance.

Por que limitar-se a associar a ideia de performance somente ao desempenho de uma campanha de fundo de funil? Não que não seja importante, mas é só uma única etapa da coisa. O conceito de performance é muito maior que isso, ele precisa ser muito maior que isso.

O motivo é simples: pelo menos por enquanto, o público-alvo de toda comunicação produzida no planeta Terra ainda é o ser humano.

Crédito: Freepik

Então, quando falamos de performance, não precisamos nos limitar a falar do final do funil. Na verdade, estamos falando do funil todo. E do líquido que passa dentro do funil, e da mão que segura o funil, e dos sentimentos e inseguranças do dono dessa mão.

Eu inclusive costumo dizer – meio brincando, meio a sério – que, para mim, não existe IA como inteligência artificial, mas sim como inteligência aumentada. A IA expande nossa capacidade de desempenho. Nossa capacidade de performance.

Nem todo resultado é mensurável. Parece estranho ler – e escrever – isso em plena era da informação (e olha que o nome da minha área de atuação é data insights). Mas eu realmente acredito que uma boa performance que chega a um bom resultado nem sempre depende de etapas e estratégias comprometidas o tempo todo com big data, small data, tendências, tendências e tendências.

INTERPRETAÇÃO EXIGE HUMANIDADE

Não se trata apenas de assumir a existência do imponderável. Isso os dadaístas e surrealistas já fizeram há 100 anos. Trata-se de assumir a existência da gravidade. Viajar de volta ao ano de 1666 e pedir para que Isaac Newton nos relembre que é ela que nos puxa para o chão. É ela que cola nosso pé na realidade.

É a gravidade que coloca nosso corpo em contato com um mundo de carne e osso, um mundo em que as pessoas sangram, suam, sorriem. Em que a grande maioria das pessoas está ocupada demais sangrando, suando e sorrindo para se importar com a tendência da semana.

Como Matt Klein, head de global foresight do Reddit escreveu recentemente: “considere a diferença entre fingir ser uma marca deprimida para parecer identificável nas mídias sociais versus fortalecer uma comunidade já existente que procura combater a crise de saúde mental.”

O contraditório, o subjetivo, o imperfeito, o espontâneo e, finalmente, o imponderável, são inerentes à condição humana.

Memes e virais – os verdadeiros virais – raramente são criados por uma marca. Quase sempre é uma difusão de ser humano para ser humano, com as marcas só assistindo ou, no máximo, se apropriando. E provavelmente memes e virais serão duas das tarefas que a IA mais vai penar para replicar com excelência.

Não é à toa que, no futebol, o hub tecnológico do VAR é simplesmente proibido de interferir em lances interpretativos. Interpretação exige humanidade. Exige que se leve em conta contradições, e não há nenhum especialista em contradições maior do que nós, humanos. Muito prazer, Homo contradicitius.

O contraditório, o subjetivo, o imperfeito, o espontâneo e, finalmente, o imponderável, são inerentes à condição humana.

Um exemplo de tecnologia levando em conta o subjetivo pode ser encontrado nos games. Nos anos 1990, a jogabilidade do NBA Live estava estagnada. Até que os desenvolvedores do game perceberam uma coisa que, de tão simples, só poderia ser revolucionária: em um jogo de basquete real, quando um jogador se move, todos os outros se movem também. O movimento de um só jogador faz com que todos os demais precisem se mexer.

Crédito: Electronic Arts

Esse tecido invisível, mas que rege a dança do jogo, passou a ser incorporado na jogabilidade de todos os jogos da franquia.

ESPONTANEIDADE É INSUPERÁVEL

Ironicamente, tudo isso que eu estou dizendo pode ser comprovado por dados e tendências, como o estudo que provou que conteúdos com estética “caseira” engajam mais do que conteúdos notoriamente produzidos da maneira mais profissional e tecnológica possível. O mesmo fenômeno provavelmente explica porque filmes como “Bruxa de Blair” (orçamento de US$ 60 mil) e “Atividade Paranormal” (US$ 15 mil) sejam clássicos imediatos.

Podemos ir ainda mais longe: se eu pegar meu celular e te mostrar um vídeo que gravei do meu cachorro brincando no parque – um vídeo tremido e pixelado, mas que captou alguma coisa aparentemente sobrenatural ao fundo –, é bem provável que você sinta muito mais medo do que se assistisse qualquer um dos 15 filmes de terror com maior orçamento de todos os tempos.

Atividade Paranormal (Crédito: Paramount Pictures)

Orçamentos milionários e a tecnologia mais avançada ainda não superam esse detalhe definitivo chamado espontaneidade. O horror deixa de ser uma experiência distante, impossível, e passa a ser relatable.

O difícil para a IA não é ser mais inteligente que o humano. Isso, acredito que todos nós já percebemos, ela conseguiu há algum tempo. O desafio não passa mais pela capacidade de processar informação. O desafio é subjetivo. Se esse desafio será superado através da capacidade de processamento de dados é uma possibilidade e também uma outra conversa.

Memes e virais – os verdadeiros virais – raramente são criados por uma marca. Quase sempre é uma difusão de ser humano para ser humano.

O fato é que o desafio da IA é conseguir pensar – ou, em última análise, deixar de pensar – como um humano. Humanos são tão previsíveis quanto uma rajada de vento. O teste de Turing parte dessa mesmíssima premissa. A máquina que passa no teste é a que consegue parecer menos com uma máquina e mais com um humano. Criado em 1950, o teste de Turing ainda não teve um vencedor inconteste.

Hoje, no mundo pós-IA, a qualidade profissional humana mais buscada é o pensamento analítico, crítico e criativo. É a capacidade de ser subjetivo, contraditório, imponderável. Imperfeito. Espontâneo. É a capacidade de ser quem somos.

Sempre me encantou a expressão “é humano”, ou sua versão completa “errar é humano”, como justificativa e contextualização de um erro, de uma imperfeição cometida. É quase uma expectativa que se erre para que se tenha certeza de que estamos todos entre humanos. Essa expressão é mais que um gesto de auto acolhimento, é um lembrete e uma aceitação da nossa própria natureza.

Levando esse conceito ao extremo, não é impossível imaginar um futuro distante em que errar (só um pouquinho e de maneira não intencional, ou seja, espontânea) possa ser considerado um bom atributo profissional.


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais