Mercado de creators não é “Vale Tudo”

Novela mostra idéia equivocadas no sonho de “ser influenciador”. Profissão desejada por 75% dos jovens brasileiros é mais do que tirar selfies, postar stories e esperar recebidos

Crédito: Reprodução/ Instagram

Camila de Lira 5 minutos de leitura

Maria de Fátima quer ser influenciadora. Ambiciosa, a vilã da novela das 21h da Globo, "Vale Tudo", quer riqueza, ascensão social e fama, a qualquer custo (e com o menor esforço).

Para chegar no resultado dos milhões de seguidores e de contratos com marcas, a personagem interpretada por Bella Campos publica selfies, vídeos de danças da moda, frases inspiradoras. Fora da ficção, muitos ainda acreditam no mesmo que “Faty”. E eles não poderiam estar mais errados.

O Brasil tem cerca de dois milhões de criadores de conteúdo, segundo levantamento da plataforma Influency.me. Um mercado que ainda está em ascensão. Segundo pesquisa da Inflr, 75% dos jovens brasileiros querem ser influenciadores digitais. A motivação de 63% é o retorno financeiro prometido pela profissão (nada diferente de Maria de Fátima).

Quase 25% dos influenciadores brasileiros são da geração Z, como indica o Censo de Criadores de Conteúdo do Brasil 2025, da Wake Creators. Os jovens são os que têm mais sucesso na empreitada de “viver como influenciador”.

Apenas 13% dos jovens que trabalham como influenciadores têm a criação de conteúdo como única fonte de renda. No plano geral, considerando influencers de todas as idades, o indicador cai de 13% para 9%.

Diferente de Maria de Fátima, ou Faty, como já está sendo chamada nas redes, os criadores brasileiros têm mais de uma carreira e conciliam estudos e trabalhos fixos com a produção para as redes.

“A fama e o dinheiro existem, sim, mas para uma minoria. A maioria trabalha sem glamour, enfrentando insegurança financeira e instabilidade de algoritmos na esperança de viralizar e ser notado pelas marcas”, afirma Ana Paula Passarelli, diretora e cofundadora da Brunch. 

NÃO TEM COPACABANA PALACE, NÃO!

Para aqueles que conseguem ganhar dinheiro com a profissão, os rendimentos não são milionários. De acordo com o maior mapeamento da creator economy do Brasil, feito pela Youpix e pela Brunch, 31% ganham em média R$ 2 mil a R$ 5 mil mensais. Menos de 2% deles têm rendimentos acima dos R$ 50 mil mensais.

A CEO da Youpix, Rafaela Lotto, aponta que a renda da maioria dos criadores brasileiros ainda é maior do que o salário mínimo, mas isso não significa uma vida de luxo.

“Acontece que, na influência e no futebol, são poucos os que chegam aos cachês milionários. A realidade da maioria é uma 'classe média creator', que paga suas contas, que faz o que gosta, mas que está bem distante do jatinho e de diárias infinitas no Copacabana Palace”, afirma.

Instagram de Maria de Fátima/ criadores brasileiros
Crédito: Reprodução/ Instagram

Assim como Maria de Fátima, 36% dos criadores brasileiros estão no segmento de moda, beleza e estilo de vida. Completamente conectado com o consumo. O que acaba iludindo a audiência, que vê nas viagens e “produtos recebidos” um traço de vida inatingível, cercada de luxo.

O que fica na entrelinha é outro dado: tais viagens e produtos são em troca de trabalho duro. Os recebidos ou as permutas com lugares não são um pagamento, são serviços e produtos dados em troca de publicações. Segundo o Censo de Criadores 2025, da Wake Creators, 67%  aceitam permuta e 57% fecham campanhas pontuais.   

CRIADORES BRASILEIROS TRABALHAM ATÉ 8 HORAS POR DIA

O caminho que Maria de Fátima toma na novela, de mostrar o estilo de vida “de herdeira”, não é incomum. Para quem trabalha com mídias sociais, a repetição de fotos em lugares badalados e com roupas caras é sintoma de que o criador de conteúdo não tem compreensão estratégica de narrativa. E que está fadado a ter ainda mais concorrentes, em num mercado que já é bastante concorrido.

A ilusão da herdeira recai para o estereótipo que se formou sobre o influenciador, de que ele é uma pessoa que não trabalha, apenas aproveita a vida. Parece que é só abrir o celular, ligar o ring light e postar. Não tem suor. Não tem consistência. Só "carão" e sorte.

Mais de um terço dos criadores brasileiros estão no segmento de moda, beleza e estilo de vida.

De acordo com o censo da Wake Creators, 42% dos criadores brasileiros levam entre quatro e oito horas para produzir um único post orgânico e outros 40% investem entre uma e três horas para cada publicação.

Quando colocamos na ponta do lápis o processo de planejamento, estratégia, organização, análise de redes e engajamento com a comunidade, as horas aumentam consideravelmente. 

Tudo isso enquanto o influenciador precisa aplicar estratégias de crescimento de audiência e pensar em novos formatos para monetização, além de tentar equilibrar a saúde mental em meio a esse turbilhão de mensagens.  “Ser influencer é muito menos sobre fama e dinheiro e muito mais sobre empreendedorismo e resiliência”, alerta Rafaela. 

VALORES E VALIDAÇÃO

Não se trata de viralizar e depois contar os seguidores, mas de criar e nutrir uma comunidade. O que exige, mais do que horas de trabalho, atenção e profissionalismo.

Estar nesse mercado significa tratar o conteúdo como um espaço para construir comunidade e não como performance. “A tendência, hoje, é pela transparência: mostrar bastidores, dificuldades, vulnerabilidades. Criadores que vivem só do 'faz de conta' têm dificuldade de se sustentar no longo prazo”, diz Ana Paula Passarelli.

Crédito: Rede Globo

Ter uma comunidade, e não apenas um grande número de seguidores, é um desafio de responsabilidade. É um trabalho que se retroalimenta. Notícias dos últimos meses mostram perfis de grandes influenciadores ligados a escândalos de promoção de sites de apostas e de jogos de azar ilegais. Caminhos que até deram dinheiro para os criadores, mas a que custo?

Se seguir o caminho da novela de 1988, Maria de Fátima ainda deve aprontar muito em "Vale Tudo". A diferença é que, fora da ficção, a conta chega mais rápido – e com menos glamour.

No jogo da influência, a audiência pode até comprar a fantasia por um tempo. Mas é a coerência, e não o "carão", que constrói reputação. E isso, Maria de Fátima ainda não aprendeu.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais