Mitos e verdades: porque deixar fatos atrapalharem uma boa história?

Contamos histórias porque narrativas específicas muitas vezes apontam para princípios mais gerais, Mas à vezes a versão é mais conveniente que o fato

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Greg Satell 5 minutos de leitura

Há um mito antigo segundo o qual as culturas inuítes teriam até 100 palavras para neve. Lembro de ter aprendido isso na escola, e havia algo de maravilhoso na ideia de que as percepções humanas podem ser tão profundamente ricas e distintas. Talvez seja por isso que, apesar de já ter sido desmentida várias vezes, a história continue sendo repetida.

Há também muita verdade no conceito por trás desse mito. Como qualquer pessoa que já aprendeu outro idioma ou viveu em outra cultura sabe, as percepções variam tremendamemente.

Em seu livro "The WEIRDest People In The World" (As pessoas mais esquisitas do mundo, em tradução livre), o antropólogo e professor da Universidade Harvard Joseph Henrich documenta o quanto essas diferenças podem ser importantes e interessantes.

O que torna o mito inuíte da neve tão atraente é que ele ilustra, de forma visceral, como a linguagem pode revelar verdades mais profundas. Por exemplo, em alemão, a palavra para “praça” é platz. Na vizinha Polônia, é plac, um termo pronunciado de forma muito semelhante. Em russo, a palavra é ploshchad, novamente mostrando o parentesco linguístico.

Na Ucrânia, porém, que está geográfica e linguisticamente no centro de todos esses países, a palavra para “praça” é completamente diferente. É maidan e vem do turco, o que sugere a história da Ucrânia com a península da Crimeia, seus laços históricos com Bizâncio e muitas outras coisas interessantes.

Os idiomas, é claro, continuam a evoluir. Desde o início dos anos 1990, a Praça da Independência, no centro da capital ucraniana, Kiev – a Maidan Nezalezhnosti – tornou-se o local das grandes manifestações, especialmente durante a Revolução Laranja, em 2004, e a Revolução da Dignidade, em 2014. Assim, hoje, quando os ucranianos dizem que é hora de “ir ao maidan”, querem dizer que é hora de protestar.

O mito da neve inuíte nos alerta para a possibilidade de examinar as línguas dessa forma, e muitos diriam que não devemos deixar a verdade atrapalhar uma boa história. Ainda assim, quando abandonamos a verdade, começamos a trilhar um caminho problemático.

OS MITOS DE BLOCKBUSTER, KODAK E XEROX

Contamos histórias porque narrativas específicas muitas vezes apontam para princípios mais gerais. Quando comentaristas querem mostrar os perigos de gigantes corporativos complacentes sendo pegos dormindo, costumam recorrer a Blockbuster, Kodak e Xerox. No entanto, assim como o mito da neve inuíte, essas histórias não são exatamente verdadeiras. Vejamos cada uma delas.

A Blockbuster é frequentemente apresentada como um alerta por ter ignorado a Netflix até ser tarde demais. Mas, como explica Gina Keating (que cobriu a história por anos na agência Reuters) em seu livro "Netflixed", a gigante do vídeo se mexeu relativamente rápido e criou uma estratégia bem-sucedida.

O verdadeiro problema foi que essas mudanças derrubaram o preço das ações e a estratégia acabou revertida quando o CEO John Antioco deixou a empresa após uma disputa por salário com o investidor Carl Icahn.

câmera fotográfica Kodak EasyShare

Da mesma forma, costuma-se dizer que a Kodak, após inventar a fotografia digital, ignorou o mercado. Nada poderia estar mais longe da verdade. De fato, sua linha de câmeras EasyShare estava entre as mais vendidas.

A empresa também fez grandes investimentos em impressão de fotos digitais de alta qualidade. O problema é que sua principal fonte de receita era a revelação de filmes – um negócio que desapareceu completamente.

Outra história popular é a de que a Xerox falhou em comercializar a tecnologia desenvolvida em seu centro de pesquisa em Palo Alto, o PARC – quando, de fato, a impressora a laser criada ali salvou a empresa.

Crédito: Rafael Garcin/ Unsplash

Também se omite que Steve Jobs pôde acessar a tecnologia da empresa para desenvolver o Macintosh porque a Xerox havia investido na Apple e depois lucrou bastante com esse investimento.

Em cada caso, a versão “didática” desses episódios levaria você exatamente na direção errada. O problema da Blockbuster não foi ignorar ameaças externas, mas não levar em conta a resistência interna.

A fotografia digital jamais poderia ter substituído o negócio de revelação da Kodak. E o Xerox PARC é, na verdade, uma história de sucesso que outras empresas fariam bem em imitar.

A LEI DE FEYNMAN

O físico Richard Feynman, uma das maiores mentes do século 20, dizia que a ciência começa com uma hipótese. Isso não é apenas permitido, é necessário. Para descobrir algo novo, é preciso deixar a mente vagar livremente. Ideias impossíveis, até ridículas, são o modo como abrimos novos caminhos.

Mas o segundo passo é crucial: é preciso testar as ideias. Ou, como Feynman colocou: “se ela não concorda com o experimento, está errada. Nessa simples afirmação está a chave da ciência. Não importa quão bela seja a hipótese, não importa o quanto você seja inteligente, quem formulou a hipótese ou qual é seu nome… Se não bate com o experimento, está errado. E é isso.”

Contamos histórias porque narrativas específicas muitas vezes apontam para princípios mais gerais.

O problema é que, quando algo parece correto, os humanos tendem a construir histórias em torno disso. Narrativas falsas, como as da Blockbuster, Kodak e Xerox, fingem ensinar lições importantes, mas na verdade nos tiram a chance de acessar percepções mais profundas.

Por isso aprendi a desconfiar de boas histórias, especialmente daquelas que eu quero que sejam verdade porque “fazem sentido”.

Precisamos questionar sempre nossas sensações, principalmente em áreas nas quais não temos formação específica ou expertise relevante. É preciso entender exatamente o que nossas emoções estão nos sinalizando, e isso exige acionar nossa mente racional.

Por isso, às vezes, é preciso deixar que a verdade atrapalhe uma boa história.


SOBRE O(A) AUTOR(A)

Greg Satell is Co-Founder of ChangeOS, a transformation & change advisory, a lecturer at Wharton, an international keynote speaker... saiba mais