Na era da IA, a imperfeição é indispensável, diz Esther Perel

Entre algoritmos perfeitos e vínculos frágeis, Esther Perel propõe a imperfeição como resistência indispensável na era da inteligência artificial

Esther Perel, psicoterapeuta e escritora, em evento em São Paulo
Crédito: Divulgação

Camila de Lira 4 minutos de leitura

Os agentes de inteligência artificial prometem ser os assistentes definitivos: escrevem relatórios em minutos, resolvem tarefas rapidamente e estão sempre disponíveis, sem pausas. Mas, segundo a autora e psicoterapeuta Esther Perel, essa perfeição algorítmica representa um risco.

Para ela, quando começamos a esperar das relações humanas a mesma previsibilidade e rapidez, comprometemos nossa capacidade de conviver, de liderar e, sobretudo, de tolerar a imperfeição – que, na era da IA, será indispensável.

Em sua primeira apresentação no Brasil, no evento Flash Humanidades 2025, a autora e psicoterapeuta Esther Perel alertou para os riscos da perfeição algorítmica. Reconhecida mundialmente por aproximar a linguagem da terapia das grandes questões contemporâneas, ela analisa as transformações dos relacionamentos em tempos de revoluções tecnológicas.

Segundo ela, à medida que interagimos com sistemas que oferecem respostas rápidas, previsíveis e sem fricção, passamos a esperar o mesmo nível de eficiência das relações humanas – que, por natureza, são marcadas pela imperfeição, pelo conflito e pela incerteza. “Estamos internalizando a perfeição algorítmica e levando essa expectativa para as relações humanas”, afirmou.

Essa expectativa compromete nossa capacidade de conviver, de liderar e, sobretudo, de tolerar a imperfeição. “A tecnologia está morrendo de vontade de simplificar dilemas existenciais em uns e zeros”, provocou. Ela acredita que essa simplificação cria uma ilusão perigosa: a de que também podemos eliminar as tensões, as frustrações e os atritos que constituem a vida em sociedade.

Esse processo está diretamente ligado ao que Esther Perel chama de “atrofia social”: uma erosão gradual das habilidades de convivência, negociação e escuta, intensificada pela digitalização das interações. “Não precisamos mais sair de casa para trabalhar, comer, comprar, fazer exercícios ou até para encontrar pessoas”, observou.

Para Perel, esse isolamento não é apenas solidão: é um afastamento social autoimposto, que mina nossa capacidade de estabelecer vínculos reais e lidar com a complexidade das relações presenciais.

A CRISE SOCIAL E DE SAÚDE MENTAL

A atrofia social, conforme ela explica, é agravada pela promessa central da tecnologia: simplificar o que é, por definição, complexo. Sistemas algorítmicos, como as inteligências artificiais generativas, oferecem soluções imediatas e previsíveis, reduzindo dilemas existenciais e relações humanas – carregadas de contradições – a respostas binárias e processos otimizados.

O problema não é apenas técnico, mas relacional. “Como vamos lidar com a bagunça da vida humana?”, questionou. Para ela, é preciso abandonar a ilusão da perfeição e recuperar a disposição para o diálogo, a fricção e o desconforto inerentes às relações humanas.

Segundo a psicoterapeuta, o mal-estar que atravessa as relações humanas hoje não pode ser compreendido apenas como uma crise de saúde mental, mas como um sintoma de uma crise social mais ampla. “Todo mundo está falando sobre a crise de saúde mental, mas isso é uma maneira de evitar falar sobre a crise da sociedade”, afirmou.

Ela argumenta que sentimentos como medo, ansiedade e solidão não são patologias individuais, mas respostas compreensíveis (e até esperadas)  diante de um modelo de sociedade que enfraquece os vínculos comunitários, impõe o isolamento e valoriza a eficiência acima da convivência. “A ansiedade é normal neste momento. Seria bizarro se você não tivesse nenhuma.”

Esther Perel critica a tendência de "medicalizar" o sofrimento, transformando-o em diagnósticos e prescrições que individualizam um problema estrutural. “Saúde mental virou um jeito de falar sobre medo, sobre solidão, sobre o fardo individual. É mais fácil tratar como sintoma do que enfrentar mudanças estruturais”, provocou.

A NOVA LIDERANÇA DIANTE DA INCERTEZA

Essa crise estrutural, que mina vínculos e amplia o isolamento, também impacta diretamente as formas de liderar. Em um contexto marcado pela complexidade e pela ansiedade generalizada, a função da liderança precisa ser radicalmente repensada: não se trata mais de oferecer respostas prontas ou manter uma aparência de controle absoluto, mas de criar um espaço seguro onde as pessoas possam experimentar a incerteza coletivamente.

“Liderança em tempos de incerteza não é sobre ter respostas, mas sobre criar um espaço seguro”, afirmou. Ela recorre à metáfora do cuidado: quando se lidera alguém vulnerável – como uma criança diante de uma situação incerta –, não se diz que tudo ficará bem, mas se oferece companhia, estrutura e clareza. “Você diz: ‘vamos descobrir juntos o que está acontecendo; vamos nos manter próximos e não soltar as mãos’”, exemplificou.

"A ansiedade é normal neste momento. Seria bizarro se você não tivesse nenhuma."

Essa nova liderança exige a disposição de acolher a ambiguidade e de sustentar a vulnerabilidade como parte do processo, em oposição ao ideal tradicional de líderes infalíveis, sempre em busca de eficiência e previsibilidade. “Ninguém confia em um líder que finge saber tudo.”

Esther Perel defende que essa é uma habilidade essencial na era da inteligência artificial, quando a tentação de delegar decisões aos sistemas e eliminar a complexidade é cada vez maior. Acolher a incerteza e, com ela, a imperfeição, passa a ser uma competência indispensável para quem lidera e para quem convive.

Na era da inteligência artificial, aceitar a imperfeição não é apenas um traço humano: é a resistência indispensável para manter vivas nossas relações, nossas lideranças e, sobretudo, nossa humanidade.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais