Não se engane, essa história de “pode falar sem medo” é uma farsa
Uma ideia superestimada, mal interpretada e perigosamente enganosa

O mundo corporativo comprou a ideia da “cultura do speak up”, em que todos são incentivados a falar sem medo. No papel, parece ótimo. Passa uma imagem de modernidade, empoderamento e progresso.
Mas a realidade é bem diferente: é um conceito superestimado, mal interpretado e pode até ser perigoso. Basta olhar os exemplos da Qantas, Boeing e ITN. Todas lançaram iniciativas de “speak up”, mas os funcionários continuaram com medo de represálias, suas queixas foram ignoradas e a confiança se perdeu.
Quando líderes promovem a cultura do "falar sem medo”, geralmente partem de três pressupostos arriscados:
1. Todos já se sentem seguros
Segurança psicológica é como cada pessoa percebe, em um determinado momento, se está protegida, confortável e confiante. É algo individual, influenciado pelo ambiente e pelas relações. É o quanto você se sente seguro na hora, com aquelas pessoas.

Nenhum funcionário sente exatamente o mesmo nível de segurança. A cultura do "fale sem medo” parte da ideia equivocada de que todos se sentem à vontade para se manifestar – o que raramente é verdade. Pedir que alguém fale em um ambiente tóxico ou hostil não é empoderar. É expor. É dar um microfone para alguém cercado de lobos.
Na teoria, essa cultura incentiva a assumir riscos, dar feedback, admitir erros, expressar opiniões e “ser autêntico” sem medo de punição. A proposta é bonita. Mas, na prática, sem uma base de segurança psicológica real, isso pode ter o efeito contrário e causar ainda mais danos. Falar, nesse caso, deixa de ser um ato de coragem e se torna um risco.
2. As pessoas já têm as habilidades para isso
Falar não é simplesmente abrir a boca. Requer um conjunto de habilidades: autoconhecimento, boa comunicação e leitura das dinâmicas da equipe. Também exige um espaço seguro e inclusivo.

A questão é que a maioria nunca foi treinada para isso. Mesmo assim, muitas empresas esperam que os funcionários saibam se expressar. Colocam cartazes dizendo “queremos ouvir você” sem oferecer ferramentas, treinamento ou apoio. Isso não é incentivo. É negligência.
3. Soluções superficiais bastam
Na pressa de criar um ambiente onde as pessoas se sintam confortáveis para falar sem medo, muitas empresas optam pelo caminho mais fácil: canais de denúncia anônima, workshops sobre confiança, discursos genéricos sobre respeito. Ideias válidas, mas insuficientes.

Se as pessoas não se sentem seguras, nenhum aplicativo, treinamento ou dinâmica de grupo vai resolver. É por isso que tantas iniciativas fracassam: porque ficam na superfície e ignoram o trabalho que precisa ser feito.
SEGURANÇA PSICOLÓGICA É UM ESTADO INTERNO
A segurança psicológica não é um sentimento coletivo nem fixo, mas um estado interno que varia de acordo com a situação. Você pode se sentir seguro em uma reunião individual, mas inseguro em um grupo maior. Ela é moldada por:
- Contexto: quem está presente, tamanho do grupo, comportamentos
- Ambiente: se é acolhedor ou hostil
- Interações: qualidade das relações, feedback construtivo ou críticas públicas
Ela está diretamente ligada à clareza mental, ao equilíbrio emocional e à estabilidade psicológica – fatores que podem mudar várias vezes ao longo do dia.
QUER QUE AS PESSOAS FALEM? PARE DE FORÇAR A BARRA
Focar apenas em promover uma cultura de falar sem medo é enxugar gelo. O que realmente faz a diferença é:
- Construir autoconhecimento
- Desenvolver habilidades de comunicação e feedback
- Fortalecer dinâmicas saudáveis de equipe
- Criar ambientes genuinamente seguros e inclusivos
- Estimular colaboração, inovação e criatividade
Sem essas bases, o resultado não será mais abertura, mas sim mais medo, mais silêncio e mais afastamento.
A grande ironia é que, quando existe um ambiente saudável e seguro, as pessoas naturalmente se sentem à vontade para falar. Forçar isso sem preparar o terreno só produz o efeito contrário do que se pretende.
O melhor a fazer é construir ambientes nos quais todo mundo se sinta seguro, o tempo todo. Faça isso e não será preciso incentivar as pessoas a falar sem medo. Elas farão isso naturalmente.